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Dante Filho: o humanista de sofá

 


Saia um pouco da esfera das narrativas da esquerda e da direita. Tente encontrar um fator de neutralidade analítica e veja apenas os fatos. É difícil, eu sei. Todos vivemos tempos em que a normalidade patológica é ficar alarmado, dando chiliquinhos. 

A mídia, o marketing e a cultura do medo são responsáveis por isso. O comportamento moderno é como se sob nossos pés centenas de baratas passasse o tempo todo.

Gritinhos, sustos, indignações, revoltas, consternamento, todos os nossos sentidos se voltam, reativamente, para eventos assombrosos. Reconheço que tem um certo efeito, mas é inútil. O mundo cruel continua o mesmo. Temos que nos conformar cok a realidade. Creio que não. Mas transformar a vida e as crueldades humanas está além das lutas políticas.

Reparem: há cerca de 3 décadas reclamamos das mesmas coisas. Algo mudou? 

O caso recente da guerra de guerilha na Penha e no Morro do Alemão, no famoso confronto "mais letal do Rio de Janeiro" (até a escolha das palavras e das definições incomodam) são o evento emocional que galvaniza hoje o País.

Como acontece nos tempos da necropolítica, divide-se os corações e as mentes. A direita defende a tese repressiva da solução final. A esquerda dá a impressão de tentar vitimizar aqueles que durante um bom tempo aprisiona e vitimiza cidadãos e cidadãs comuns nas suas comunidades. Não se sabe quem é pior.

Sinto em dizer, que a direita pelo menos, neste caso, é menos hipócrita e, talvez por isso, tem apoio da sociedade, conforme as pesquisas. A narrativa da esquerda não cola, apesar dos bilhões gastos em comunicação.

Seria simples ver as coisas por essas lentes focais, mais redendoras e humanistas. Mas não dá. Nem milhares de livros explicaria os dramas humanos e as razões pelas quais a situação chegou a esse ponto. 
O mesmo pode-se falar da faixa de Gaza, da guerra da Ucrânia, dos conflitos no Congo e nas grandes cidades da Europa, Rússia Ásia e Estados etc.

O avanço da tecnologia e dos meios de comunicação criou assim o "humanista de sofá". No conforto de sua casa, tomando seus drinks, se fartando do bom e do melhor, ele se vê com autoridade para pontificar sobre o assunto como se fosse o maior especialista do mundo.

Mais: ele exige pra si credibilidade, confiança nas suas opiniões e fé cega nos propósitos que difunde. Ele exige ser considerado uma espécie de semi-deus porque ele tem em si um personagem moralmente superior, com virtudes a ensinar e caráter a se transformar em exemplo de homem perfeito, engendrando em suas mãos a bondade e a solidaderiedade, emanando, para efeito simbólico, uma aura santificada, pela qual a justiça e os direitos humanos encarnam nele e nos seus o mito protetor dos fracos e aprimidos.

O "humanista de Sofá", claro, se considera de esquerda. Não pensar como ele é uma manifestação herética. Basta relativizar suas certezas que, de imediato, você se transforma num oponente, ou mesmo num inimigo a ser caçado e abatido. 

Não, não pode haver pessoas que pensem de outra forma, que defendam a ideia de que vítimas de uma sociedade desigual não podem ser rechaçadas pela autodefesa ou pela ação (mesmo que violenta) do Estado.

O "humanista de sofá" é um combatente ativo, mas primeiro ele precisa ter assegurado um ambiente no qual a criminalidade sempre seja uma remota possibilidade, jamais uma certeza, diferente de um morador de favela. 

Seu modus operandi no Brasil funciona assim: ele assiste ou lê o noticiário. Não reage. Aguarda a reação dos companheiros de luta (governo, parlamentares, artistas, jornalistas,"especialistas" escolhidos a dedo, enfim, essa grande massa difusora do chamado "pensamento progressista") e depois mete o dedo no teclado e começa a reproduzir, de maneira acriticia, as ordens emanadas de cima, do comando ideológico superior. 

A direita faz a mesma coisa, com outras pautas. E depois fica o sujo falando do mal lavado. Seria risível se não fosse abjeto.

Tem jornalista que, ao vivo, na TV, de celular na mão, simplesmente lê o texto produzido pela central de comunicação oficial sob o comando de um tal de Sidônio e emite uma mistura de informação, narrativa e linha ideológica tem a nobre finalidade de mostrar o "caminho correto" na análise do que está acontecendo.

Quem leu "1984", de George Orwel, certamente deve compreender o que estou tentando explicar.

Se eu fosse tentar desenhar o "humanista de sofá" ele se parece com aquele bonequinho de "Meu Malvado favorito", Minion Bob, na sua sanha reveladora de seguir a manada repetindo a mesma coisa.

O "humanista de sofá" sofre de três males pós-moderno, tipico da geração Milenium: narcisismo, ressentimento e profundo sentimento de culpa. Eles acreditam no conceito do "lado certo" da história quando se colocam ao lado dos aprimidos sem perceber que ao colocar sua máquina de operação mental para funcionar, paradoxalmente, ele passa a exercer um contundente exercício de opressão.

O mundo já foi mais violento. Mas precisou de mais de 2 mil anos de pacto civilizacional, religiosidade e democracia para melhorar esse quadro. E mesmo assim, mais de 60% da população mundial vive sob regimes autocráticos, ditatoriais e bárbaros. Para haver avanços neste campo não será tolerando e passando paninho para a expansão do crime organizado e das vilanias do Estado (como corrupção, impunidade e expansão da pobreza) que chegaremos lá.

A esquerda tem que aprender a ser rigorosa com as falas de suas lideranças. As últimas de Lula, por exemplo, deviam ser rechaçadas com o mesmo vigor do que fizeram com as maluquices de Bolsonaro. Se houvesse cobrança sem filtros ou preferências, podem ter certeza, eles diriam: eu errei, errarei, mas sempre pedirei perdão. 

É melhor o cinismo explícito do que a fuga do cenário de crise.