Cinco anos antes de morrer, aos 36 anos, Kafka – já um escritor maduro – durante uma fase em que ficou internado em um sanatório para um tratamento de turbeculose, decide fazer um ajuste de contas literário com o pai despótico, ao qual ele atribuía todos os males de sua vida.
O texto, no fundo, tratava-se de uma declaração de amor, ódio, medo e reverência a um homem que Kafka precisava desesperadamente compreender para perdoar.
O blog publica aqui alguns trechos da obra 'Carta ao Pai", como uma espécie de homenagem aos pais, e também para chamar a atenção sobre a profunda intensidade das relações filiais, que não são tão simples como imaginam os cultores de certo romantismo ingênuo que marca esse dia.
Os personagens paternos são repletos de conflitos. E as obras mais importantes da literatura universal nos remete a eles. Para o bem e para o mal.
No fundo, o pai que temos somos nós mesmos refletidos no espelho que é um fragmento de nossa essência.
Carta ao Pai
Você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Como de costume, não soube responder, em parte justamente por causa do medo que tenho de você, em parte porque na motivação desse medo intervem tantos pormenores, que mal poderia reuni-los numa fala. E se aqui tento responder por escrito, será sem dúvida de um modo muito incompleto, porque, também ao escrever, o medo e suas conseqüências me inibem diante de você e porque a magnitude do assunto ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento.
Para você a questão se apresentou em termos muito simples, pelo menos considerando o que falou na minha presença e, indiscriminadamente, na de muitos outros. Para você as coisas pareciam ser mais ou menos assim: trabalhou duro a vida toda, sacrificou tudo pelos filhos, especialmente por mim, e graças a isso eu vivi “à larga”, desfrutei inteira liberdade para estudar o que queria , não precisei ter qualquer preocupação; em troca você não exigiu minha gratidão – você conhece a “gratidão dos filhos” – mas pelo menos alguma coisa de volta, algum sinal de simpatia; ao invés disso sempre me escondi de você no meu quarto, com meus livros, com amigos malucos, com idéias extravagantes, nunca falei abertamente com você, no templo nunca ficava a seu lado, num o visitei em Franzensbad (balneário na Boêmia, onde os pais de Kafka passavam férias no verão), aliás nunca tive sentido de família, não dei atenção à loja nem a seus outros negócios, a fábrica eu deixei nas suas costas e depois o abandonei (...).
(...)
Eu era uma criança tão morosa, cansada, medrosa, amuada, cheia de culpa, servil, maldosa, preguiçosa, voraz, avarenta, que eu mal podia olhar para ela, dirigir-lhe a palavra, de tanto que se submetia, de um jeito semelhante ao meu, ao jugo da educação. Especialmente sua avareza me era repulsiva, uma vez que em mim ela era, se possível, mais forte ainda. A avareza é sem dúvida um dos sinais mais confiáveis de infelicidade profunda; eu estava tão inseguro de tudo, que só possuia, de fato o que já segurava nas mãos ou na boca (...)
(...)
Meus escritos tratavam de você, neles eu expunha as queixas que não podia fazer no seu peito. Eram uma despedida intencionalmente prolongada de você; só que ela, apesar de imposta por você, corria na direção definida por mim. Mas como tudo isso era pouco! Só vale a pena falar a respeito porque aconteceu na minha vida, em qualquer outro lugar essa atividade não seria absolutamente notada, e mesmo assim porque dominava a minha vida, na infância como pressentimento, mais tarde como esperança, mais tarde ainda como desespero, ditando-me – se se quiser novamente de acordo com o seu figurino – minhas poucas e pequenas decisões.
Tradução: Modesto Carone