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Alexsandro Nogueira: Testemunha em silêncio

 


Não demorou muito até percebemos uma alteração nas atitudes de papai: não tinha fome para estar à mesa nem disposição para interagir com a família durante as refeições. Um comportamento um tanto esquisito para um homem domesticado, cuja a única vaidade estava em ostentar um bigode volumoso e alguns dentes na boca.


Em casa, não tínhamos a menor ideia de que papai estava de cabeça virada e passava o dia paquerando na porta do serviço. Nem muito menos sabíamos que ele praticava bigamia ao receber visita íntima durante o expdiente, e em plena luz do dia

A única coisa que tínhamos certeza, era de que antes de retornar para o lar, ele dava um pulinho com dois ou três amigos num bar da vizinhança para suavizar a vida no frescor das cervejas.

Por causa desse novo comportamento, mamãe passou a segui-lo. Ela desconfiava da ligação amorosa de papai com sua vizinha de frente. As suspeitas recaíram sobre uma manicure miudinha que morava do outro lado da rua. Mamãe tinha um palpite de que essa fulaninha se deitava com papai no depósito da firma, atrás das sacas de sementes.

Assanhado, papai dizia aos amigos de bar que preferia as baixinhas porque elas gostavam de safadeza, além de molejo na cintura e bom movimento nas pernas.

Por algum tempo, continuamos sem uma pista esclarecedora sobre o caso até que as coisas começaram a fazer sentido. A conexão com a realidade se deu porque o dinheiro da quinzena passou a sumir da gaveta da cômoda e aparecer no bolso do guarda da firma.

Nós acabamos descobrindo tudo: papai bancava uma grana extra para o vigia ficar de butuca na porta da empresa, caso alguém aparecesse de supetão, enquanto ele praticava seus amassos vespertinos no lençol estendido sobre as sacas de soja.

Enquanto isso, mamãe não entregava os pontos, fingia que nada acontecia e enfrentava com otimismo as crises matrimoniais. Dona de um conformismo comovente, atendia a qualquer chamado de papai e sempre com ânimo para satisfazê-lo no leito conjugal. Era sua obrigação de mulher.

As aventuras amorosas de papai tornaram-se mais intensas depois que ele passou a frequentar bailes da amizade e almoços dançantes. Nesses lugares, impunha seu violão com destaque e repousava seus olhares libidinosos sobre a anca das frequentadoras.

E foi em uma dessas festanças que ele se atracou com uma paraguaia roliça. A mulher era divorciada e, por esses acasos da vida, era vizinha da família de papai. A coincidência facilitou a aproximação do casal e o flerte começou ali mesmo.

Dias depois, papai não quis espichar o assunto, mas foi enfático ao avisar que sairia de casa, afastando qualquer hipótese de reconciliação. Sem saber o que fazer, eu e minhas irmãs tentávamos segurá-lo de todo o jeito, chegando a apelar para rezas com benzedeiras, e todo tipo de simpatias domésticas. Nada disso deu certo.

Era difícil acreditar que aquele homem tímido, de pouca conversa, agora só dava bola para essas coisas de cama e festanças que despertavam seu sex appeal. Nosso mundo estava desabando.

Em casa, mamãe era só tristeza e silêncio. Pálida e emudecida, só pensava em sumir e passar uns tempos com as irmãs em Cuiabá. Mas antes, queria dar um trato no visual: coisa pouca como arrumar os dentes, fazer um regime e renovar as madeixas nos cabelos. Um empurrãozinho para levantar a autoestima e recomeçar a vida.

Sem o mesmo brilho nos olhos, passava o dia em meio a réguas e panos, modelando vestidos na máquina de costura. Estava um trapo. Quando conseguia erguer o rosto, se levantava da cadeira e ia cuidar da casa: varria a varanda, lavava roupa e limpava os cocôs das gaiolas dos passarinhos.

Pra piorar as coisas, ouvia todo o tipo de fofocagem que corria à solta na vizinhança. Mas preferiu ficar metida nos afazeres domésticos a esperar pelo estouro da notícia: que papai fora morar com outra.

Quando ele partiu, mamãe chorou um tipo de lágrima que seca os ossos. No caso dela, acrescentaria a seguinte frase: “A traição é uma lembrança que não se apaga, só se amarga”.

Papai foi viver com a paraguaia e ficou com ela por uns seis anos, até não conseguir mais aturá-la. A mulher era de um ciúme doentio e dava chiliques quando o flagrava no portão flertando com as vizinhas. Batia o armário, esmurrava a porta e dizia a todos que podia viver sem ar, sem água, mas sem o papai, jamais.

Com as crises de ciúmes frequentes, vieram o desgaste da relação. Desta vez, ele pulou a cerca literalmente com uma vizinha de muro. A moça era esbelta, de boa anca, olhar atrevido, mas com um comportamento assanhado.

Papai gamou: não quis saber do passado da moça e se enfurnaram numa edícula insalubre lá no serviço dele. Para piorar as coisas, ele com medo de ser corneado, preferiu domesticá-la a contragosto, lacrando portas e janelas em um tipo de cárcere privado.

A mulher não gostou nada de ficar em uma jaula de cimento sob os arrulhos dos pombos no forro. Por causa disso, a relação azedou e logo ela pediu o chapéu, dando um chega pra lá em papai.

Antes de partir e para justificar a separação, citou uma série de motivos pelos quais desistiu da relação. O pior deles não foi a situação constrangedora de estar trancafiada, mas um segredo que veio à tona: o odor dos gases intestinais que papai liberava no período noturno.

Aquilo era constrangedor e o quartinho ficava impregnado com um cheiro insuportável. Papai tinha problemas nas abluções matinais e permanecia constipado durante o dia, indo se aliviar só no período da noite.

Chegou a buscar tratamento em Mineiros, ‘lá no Goiás’, mas de nada adiantou. Só mamãe o aturou com esse problema fétido por tanto tempo.

Com os anos, papai abdicou das parceiras fixas. Eram só chamegos temporais, coisa sem compromisso. Demorou, mas um dia aquele fogo cessou, a próstata falhou e o desejo quase adormeceu. Homem de fé, passou a frequentar uma igreja evangélica pra salvar a alma. Lá buscou o perdão e procurou esquecer o gosto pelo pecado impregnado no corpo.

Mamãe ainda o espera e sempre trabalhamos com a possibilidade de uma reconciliação. Vira e mexe ensaia uma reaproximação, mas o medo da vida dupla de papai esfria a coisa. Dia desses, chegamos a acreditar que daria tudo certo: uma movimentação estranha num quartinho durante um evento familiar dava conta que alguma coisa estava rolando.

A gravação do circuito interno das câmeras mostrou um casal saindo às escondidas do cômodo. A família ficou na torcida, mas quando congelamos a imagem e aproximamos a cena, tomamos um susto! Flagramos papai fechando a blusa de uma mulher que morava na vizinhança.

No fundo, todos nós sabíamos: papai era um homem com o coração condenado à bigamia. Um sujeito que nasceu pra viver o amor livre, sem compromisso com ninguém. Não havia salvação para aquele tipo de pecado que nasce do desejo. Um vício antigo, enraizado nas horas de solidão.

Alexandro Nogueira, jornalista, escritor e músico. O texto acima é um conto do cotidiano na linha "a vida como ela é".