Capa do novo trabalho de Guilherme Rondon:
um primor que revela o melhor da música sul-mato-grossense
Um amigo que conhece minha má vontade com o que se denomina "arte regional" me liga outro dia para me provocar: "você que despreza tanto a cultura sul-mato-grossense já ouviu o ultimo trabalho do Guilherme Rondon?".
Eu ri e me preparei para fazer um discurso repetitivo sobre que não se trata de gostar e não gostar do nosso "regionalismo", mas sim de ter outras referências conceituais sobre o tema, o que, com o tempo, tornou-se uma deblateração cansativa - pelo menos para mim - escrever sobre o assunto, sendo que já publiquei artigos, ensaios e palestras sobre a questão e, pelo visto, foi inútil pelo fato de que fui atirado no abismo da insignificância depois de inúmeras tentativas.
Reconheço que teorizar sobre o regional e o nacional é bizantino. Da mesma forma que falar sobre "identidade regional" é versar sobre o inútil com pose de intelectual de boteco. Deixa pra lá...
Uma vez entrevistei para o Correio do Estado o sociólogo Octavio Ianni (meses antes dele falecer em 2004) e tratamos da temática da arte regional, na qual ele achava o referido conceito um verdadeiro disparate, ainda mais quando vivíamos o início do processo de globalização.
Ianni mostrava o caráter diluidor dos regionalismos quando vivíamos o alvorecer da Era do Markenting e que, estabelecer critérios de marcação com rótulos como "arte regional" ou "arte-raiz", nada mais era do que um tributo à picaretagem que alguns artistas estabeleceram para ocupar um espaço no mercado.
A realidade posterior mostrou que ele estava certo.
Prometo que mais não falo sobre isso, pois acho que posso cansar o leitor com coisas que provocam chiliques em alguns e extase em outros. Vida que segue...
O que quero falar é sobre o trabalho de Guilherme Rondon ("Cadê? Cadê") que ouvi uma, duas, três, talvez uma 20 vezes, e conclui que se trata do existe de melhor que a criação musical já produziu nos últimos 30 anos em Mato Grosso do Sul.
Com certeza, é o melhor disco (disponível em vários streamings) de música contemporânea de 2025, não só revolucionando tendências com uma pegada inovadora, mas transbordando para além dos modismos da canção do Brasil Central, abrindo-se para imensa variedade de sons e ritmos, com letras bem acabadas (algo raro por aqui) construindo uma ligação intrínseca entre os Brasis urbano e rural como nunca ouvi antes.
O que me espanta é que um trabalho cuja densidade e qualidade devia ser um elemento referencial do alcance de nossa arte no mundo, atualmente esteja ocupando o espaço opaco do silêncio, algo que devia envergonhar a nossa classe artística.
As várias patotas de nossa cultura certamente devem estar mais preocupadas com boquinhas financiadas por fundos estatais da cultura do que em validar o que realmente tem valor para nossa arte, no caso, nossa música. Triste isso.
(Vejo que nos últimos dias esse pessoal está queimando carvão com um festival literário cuja relevância é uma combinação desastrosa de nada com coisa nenhuma, mas deixa pra lá...)
O disco de Guilherme Rondon (que conheço episodicamente, pois nunca conversamos sobre assunto nenhum) precisa ser valorizado pela grandeza daqueles que tomaram a empreitada com respeito pelo bom gosto, desejosos em oferecer o melhor possível para as pessoas que amam a música em toda a sua amplitude.
Rondon conseguiu reunir músicos que transitam nas mais variadas correntes e criar uma obra-prima que certamente será reconhecida por várias gerações como marco referencial de nossa história.
Sei que a diluição e a banalização da arte é uma marca de nosso tempo. Mas quando uma centelha de luz espoca aqui e ali no gramado ralo da nossa inventividade devemos render respeito ao esforço e talento daqueles que lutam para nos oferecer o melhor da raça.
Agradeço ao amigo que, mesmo com sarcasmo e ironia, pediu a minha audiência, sabendo que eu faria a contraprova se não tivesse a apreciação devida ao trabalho porque acho que ao lixo o que é do lixo, e ao jardim tudo que a beleza nos oferta.
"Cadê? Cade" tem relevância estética e importância cultural, mesmo porque faz uma combinação equilibrada de elementos do jazz com a tradição sonora de Mato Grosso do Sul, com participação de nomes de peso como a
cantora Leila Pinheiro e Gabriel Sater.
Além disso, tem um diferencial importante que está nas mãos do pianista Salomão Soares (um dos grandes expoente do jazz brasileiro da atualidade), que leva cada faixa do trabalho a outro patamar . O resultado é sublime.
A produção do disco ficou por conta do baterista Thiago
Rabelo, conhecido na cena instrumental por integrar a banda do pianista César
Camargo Mariano. O baixista é Alex Mesquista, campo-grandense, que integra a banda da dupla
Chitãozinho e Xororó.
Como se pode ver, trata-se da mais pura expressão da nossa brasilidade que, infelizmente, não tem merecido o destaque devido em nossa terrinha, ainda perdida no gueto do eixo cultural Rio-São Paulo. Triste isso.
Músicas & Autorias
Cadê? Cadê
Guilherme Rondon
Vou Lembrar sem Querer
Guilherme Rondon e Gabriel Sater
Mesmas loucuras que eu
Guilherme Rondon
Dia Raro
Guilherme Rondon e Leila Pinheiro
É sempre assim
Guilherme Rondon
Dentro das Palavras
Guilherme Rondon
Confessa
Guilherme Rondon