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Alexsandro Nogueira: Quem sou eu, além dos papéis que já interpretei?

 

 


Há pouco mais de um mês, recebi do músico Guilherme Cruz (Filho dos Livres e Almir Sater), amigo e cúmplice de tantas aventuras,  um vídeo do Inverno Russo, banda que formamos no início dos anos 90.

A cena: o palco do festival promovido pelo Colégio Dom Bosco, em novembro de 1992. Mal deu pra ouvir a música com o som cheio de ruídos, mas ali estávamos, convictos de que aquilo bastava. E, por um tempo, bastou.

Conversamos longamente sobre esse período. A imagem nos capturava em nossa forma mais bruta, juvenil, cheia de certezas. Mas o que mais me perturbou não foi a estética do vídeo, nem a afinação duvidosa.

Foi perceber, com alguma estranheza, que aquele músico ainda mora dentro de mim. Envelhecido, claro. Mais cético. Mas ainda ali, como um sonhador que nunca desfez as malas.

Naqueles seis anos (adolescência até o início da vida adulta) tocamos em comícios, festas, colégios, cidades vizinhas. A vida girava em torno da banda. Talvez até mais do que isso. 

Era uma ideia de futuro ou uma fuga do presente. Hoje, ao lembrar desse período, percebo que aquele projeto me deixou marcas e sequelas. Algumas visíveis, outras subterrâneas. Nenhuma indesejada.

Dias depois, lendo “A Passagem do Meio”, de James Hollis, fui surpreendido por uma pergunta. Não era nova, mas naquele momento soou como brutal: Quem sou eu além dos papéis que já interpretei? filho, músico, jornalista, marido, pai. Quais são as máscaras sociais que eu visto para suportar minha rotina entediante?

Hollis fala da meia-idade como esse ponto de inflexão. Quando as certezas que nos sustentaram começam a ruir. E aquilo que antes parecia conquista vira fardo. Ele propõe um exercício de honestidade: identificar as ficções que construímos para sobreviver. E, talvez, abandoná-las. Nem que seja aos poucos. Nem que doa.

Desde então, tenho feito essa busca silenciosa. O que mantenho por hábito? O que desempenho para agradar? O que me falta coragem de abandonar? Não tenho respostas. E talvez não haja. Mas ao menos reconheço que o show acabou. Resta saber o que de mim sobrou no escuro da ribalta.

O vídeo do Inverno Russo me fez ver que o passado não passa. Ele se disfarça. E, às vezes, acena de longe, pedindo que a gente o escute de novo. Não com nostalgia. Mas com atenção. Porque, no fim, talvez o que chamamos de “identidade” seja só isso: o que ficou quando a música parou.



Alexsandro Nogueira, jornalista, músico e escritor. Mora em Campo Grande. Mato Grosso do Sul