Assisti ao documentário ‘Apocalipse nos Trópicos’, (em exibição no Netflix), com a devida disposição de espírito: o mesmo olhar que reservo a certos evangelistas da Avenida Paulista (SP) que prometem prosperidade em nome de Jesus. A obra, claro, tem seus méritos. Mostra, com recursos dramáticos e trilha sonora opressiva, o avanço do fundamentalismo religioso sobre a política brasileira.
A tentação messiânica, as falas grandiloquentes, a salvação da pátria e tudo isso embalado por um cristianismo que, se Cristo visse, pediria para se desassociar da marca. Enfim, um documentário estatal, com o famoso carimbo chapa branca que um trabalho cinematográfico no Brasil faz jus.
Mas faltou à cineasta Petra Costa (rebenta festiva de uma família de grande empreiteiros) um segundo olhar. Aquele que registra não apenas os delírios da fé, mas também o cinismo dos que a condenam. Até porque crítica à religião, quando feita com soberba, costuma trazer a mesma arrogância que denuncia.
E arrogância é um vício de seres menores. Enquanto bocejo com o documentário, recordo do escritor irlandês C.S. Lewis e o padre tcheco Tomáš Halík (que viveu a fé entre as ruínas do comunismo). Ambos sabiam que o problema não é a religião no poder, mas o poder que se fantasia de religião.
Lewis, por exemplo, nunca foi entusiasta da “igreja oficial”. Ao contrário: via o cristianismo como um freio aos instintos totalitários — fossem eles seculares ou sagrados. Em ‘Cristianismo Puro e Simples’, ele distingue fé de fanatismo com a clareza de quem já viu regimes ateus fazerem o que nenhum inquisidor medieval ousou. Para Lewis, a fé que sobrevive é a que opera no campo da consciência, não a que distribui cargos comissionados no Congresso Nacional.
Já Halík, por sua vez, fala de uma “fé subterrânea”. Na Tchecoslováquia comunista, ele celebrava missas clandestinas e batizava crianças em banheiros de prédios inascessiveis à polícia política.
Aprendeu, na marra, que quando a Igreja perde o poder, pode reencontrar sua alma. Seu livro ‘Paciência com Deus’ é uma ode à fé que escuta mais do que prega, que abraça a dúvida como parte do caminho.
Imaginar Halík como cabo eleitoral de algum “ungido do Senhor” é tão absurdo quanto convocar C.S. Lewis para um culto com brados de “toma posse da tua bênção!”
O documentário erra não porque denuncia o messianismo político (nisso acerta). Erra por sugerir que tal fenômeno é o destino inevitável de toda religião. Coitada de Petra, nunca leu Dostoiévsk. A má-fé, aqui, veste uma roupagem de esclarecimento. E ignora que, historicamente, foram homens de fé os que mais resistiram ao poder desumanizante: basta lembrar Martin Luther King, Dietrich Bonhoeffer, Dom Hélder Câmara. Nenhum deles era um santo de palanque e talvez por isso façam tanta falta.
C.S. Lewis diria que o Estado deve se precaver do clero tanto quanto o clero deve se precaver do Estado. Halík alertaria que, onde a fé vira arma ideológica, a cruz se transforma em porrete.
Ambos concordariam: cristianismo é exigência ética, não slogan eleitoral. É mais fácil achar Deus no silêncio da consciência do que no grito de algum beato da república que promete curar o Brasil à base de versículos e fake news.
O que ‘Apocalipse nos Trópicos’ denuncia é real, mas tendencioso e incompleto. A religião pode, sim, ser um instrumento de poder devastador. Mas também pode ser antídoto contra ele.
Lewis e Halík, cada um à sua maneira, lembram que a fé verdadeira não é espetáculo, mas renúncia. Não é conquista, mas serviço. Talvez seja justamente por isso que ela assuste tanto — e por isso mesmo, ainda faça tanto sentido.