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Alexsandro Nogueira escreve: Jonathan Swift e o vício que tornam os homens menores

 

Há uma semana, uma amiga me fez a famosa indagação, pergunta ingrata,  enquanto jantávamos em uma pizzaria, no bairro do Brás, na capital paulista: Qual seria o livro que define a minha vida? 

Por alguns instantes, hesitei, incomodado pela complexidade da resposta, mas depois comecei a pensar no assunto. Não se trata de um único volume; são várias as obras que se entrelaçam, como as pegadas de um andarilho sem rumo em terras desconhecidas.

Escolher apenas um seria como apagar o que cada página deixou na minha memória. Convenhamos, o livro da vida é um manuscrito em constante revisão. O que ressoava com fervor aos vinte anos, já não ecoa da mesma forma ao cinquenta, e mais tarde, aos sessenta ou oitenta, será apenas uma nota de rodapé na biografia de cada pessoa.

Elaborei uma lista, traçada em etapas que se desdobravam com os ciclos da minha vida: a infância, a adolescência e a juventude. Iniciei com as intrigantes narrativas de Sherlock Holmes, criadas pelo britânico Conan Doyle, e fui encerrando essa jornada literária com a prosa do germânico Ernest Jünger, cujas palavras traduzidas para o português pela extinta Cosac se ergueram diante de mim como um monumento literário, deixando marcas indeléveis na lembrança.

Foi então que me dei conta de que um autor se fazia presente nas diversas estações da minha vida: o irlandês Jonathan Swift e sua obra seminal, “As Viagens de Gulliver”, mostrando os vícios da condição humana em cada um de nós.

É quase desnecessário narrar a saga do capitão Lemuel Gulliver e suas aventuras nos reinos da fantasia. Ao aportar em Lilipute, ele se torna um gigante diante de um povo diminuto, enquanto, na grandiosidade de Brobdingnag, se revela tão pequenino diante da estatura gigantesca de seus habitantes.

Após esses horrores de grandeza, Gulliver depara-se com os eruditos da Laputa, os estudiosos de Lagadoe os medíocres yahoos, como os cavalos se referem aos homens. Ao concluir suas andanças, o capitão se torna uma mera sombra do seu passado: mergulhado em melancolia e em um profundo desencanto com a condição humana, refugia-se em sua própria paz.

Gostar de Swift na infância é fácil de explicar. Mas esse Gulliver infantil não conta: é apenas uma pequena parte, do texto original (são quatro volumes ao todo).

Só reencontrei Swift na fase adulta e foi a minha educação sentimental: a obra não era apenas entretenimento. Era um tratado, uma condenação profunda da soberba e da arrogância humana como eu nunca tinha visto antes – e como eu nunca mais voltei a ver depois.

A minha profunda desconfiança da humanidade, talvez tenha sua origem na leitura de Swift, quando Gulliver chega à angustiante conclusão de que os equinos ostentam uma civilização superior à dos próprios homens.

Nos anos subsequentes, revisitei a obra, só para reforçar meu pessimismo. E agora, aos 52 anos, retorno mais uma vez, com a intenção de redigir este texto. A prosa se mantém esplendorosa; e a crítica do autor à nossa soberania moral, intelectual ou política se revela imbatível.

Devemos considerar a reclusão de Gulliver como uma medalha de honra? Ou seria, ao contrário, um vício enraizado no caráter, a expressão trágica da vaidade do capitão? Arrisco a segunda suposição: há instantes em que o desprezo pela humanidade nos cega para aquilo que ainda possui valor a ser resgatado.

Espero retornar a Gulliver em breve, quando completar sessenta anos (faltam apenas oito). Como sempre ocorre na experiência do leitor, essa mesma obra será, em última análise, o reflexo da pessoa que me tornei, simples assim.







Alexsandro Nogueira, jornalista, escritor, músico, colaborador deste Blog