Peço desculpas aos leitores pelo longo texto que vem abaixo. Ele é uma pequena parte de um livro que escrevi sobre a história da cidade, mas que acabou não sendo publicado por conta de disputas mesquinhas e ciumeiras dentro da prefeitura de Campo Grande, durante a gestão de Marquinhos Trad. Um dia talvez relate essa história decepcionante, que terminou por me revelar algo que eu já sabia mas que finalmente vi acontecer na prática.
Independentemente disso, o grosso do livro ficou em minhas mãos e um dia, quem sabe, eu volte a trabalhar na sua edição para publicá-lo, sem interferências nem jogo de interesses escusos.
Parte I
Campo Grande nasceu há 125 anos, em 26 de agosto de 1899. A grande invenção anunciada com estardalhaço naquele dia era um aparelho prosaico: o motorzinho elétrico dos dentistas. Meses antes, o arqueólogo alemão, Robert Koldewey, anunciava as descobertas das imensas muralhas da babilônia. Esses eram os fatos relevantes na imprensa mundial.
Fora isso, no Brasil da faixa litorânea, dava-se atenção à imensa crise econômica na Argentina e os jornais do Rio de Janeiro e São Paulo celebravam a existência de uma novidade até então inimaginável: a liberdade de expressão.
O nascimento de um município nos grotões de Mato Grosso, definitivamente, não era notícia. Ninguém ficou sabendo de nada, a não ser alguns burocratas do gabinete republicano do presidente Campos Sales. Há um fato curioso nos relatos que contam que, quando aqui chegou, José Antônio Pereira – tido como fundador da cidade – “não havia ninguém, salvo alguns escravos” na região chamada de “Furnas de Dionísio”.
O tempo passou e pouco se ouviu falar de Santo Antônio de Campo Grande. Mais tarde, e muito devagar, isso mudaria. Com seus meandros, suas lendas e seus desdobramentos históricos, 80 anos depois, o município daria um passo fundamental e cravaria definitivamente seu nome na história: transformou-se na Capital de Mato Grosso do Sul.
Isso aconteceu há 40 anos, em 1979. São dois momentos distantes, mas que só agora torna-se possível condensá-los para compreender, com maior clareza, o que aconteceu nesse período, entre o nascimento do século XX e a passagem do século XXI.
São dois acontecimentos históricos simbólicos: passamos de província à metrópole num período em que a humanidade viu suas mais profundas transformações, com verdadeiras revoluções em todos os campos da atividade humana. Deixamos a condição interiorana e passamos a ocupar o centro de decisões político e administrativa de um dos Estados mais importantes do Centro-Oeste brasileiro.
No começo do século, as novidades demoravam meses para chegar em lugares distantes do interior brasileiro. Agora, bastam poucos segundos. Quem imaginaria que pudesse ser assim lá pelos anos 10, 20 e 30? Quem conseguirá imaginar o que será daqui pra frente?
Mato Grosso do Sul foi a primeira experiência de redivisão territorial do Brasil, depois que o Barão do Rio Branco definiu o mapa do país. Neste aspecto, somos uma espécie de laboratório social – juntamente com Tocantins - para tornar mais diversa a administração da Federação brasileira. Estamos no começo de um processo. O futuro dirá se caminhamos pela boa estrada do desenvolvimento econômico e social – ou se tudo não passou de um erro episódico ao longo da história. Certo ou errado, a decisão é irreversível e indicará nossa identidade daqui pra frente.
Criar um Estado e uma nova Capital não constituem fatos triviais. Isso mexe com a cultura e a cidadania. Isso cria milhares de possibilidade de análises e leituras sobre nossas vidas e, mais importante, abre espaço para especular como esses fatos vão impactar no nosso futuro.
Como seremos nos próximos 100 anos? Qual será nosso papel na formação da identidade nacional? Como vamos ler o Brasil quando nosso peso político e econômico estiver à altura de nossas potencialidades?
Essa aventura já começou e é preciso, mais do que nunca, pensar sobre essas questões. O campo das possibilidades é imenso. Por isso, é fascinante mergulhar nessa nova realidade que está nascendo, olhando o passado para projetar o que virá na próxima esquina, no ano de 2139.
Nesse aspecto, a partir deste ano da graça de 2024 Campo Grande passará a fazer uma profunda revisão de sua história. Mesmo que essas memórias não sejam escritas, cada cidadão e cidadã buscarão nas suas pequenas lembranças as etapas vencidas e as lutas que terão que ser enfrentadas. A imprensa rememorará o 26 de agosto com os eventos e personagens mais importantes da nossa cidade.
Datas como essas abrem excelente oportunidade para refletir sobre as conquistas e as derrotas, os erros e acertos cometidos, produzindo uma síntese de nosso desenvolvimento social e econômico para que as futuras gerações tenham perspectivas para fazer da nossa cidade um lugar especial para se viver e ser feliz.
Conhecer o passado é fundamental, mas pensar pra frente é essencial. Por isso devemos nos situar no tempo e compreender como as mudanças do espaço de nossas vidas foram acontecendo. Uma coisa é viver num lugarejo pequeno, onde todos conhecem todos; outra, é sair às ruas todos os dias e descobrir que estamos em permanente transformação - e que tudo está mudando muito rápido.
Uma cidade é uma organização complexa. Milhares de demandas e interesses influenciam seu cotidiano. Em muitos sentidos, cidades têm vida própria.
Com uma população de quase 1 milhão de habitantes, pode-se afirmar que Campo Grande tem a mesma quantidade de ramificações e expectativas mentais, interconectando-se 24 horas por dia. Cada habitante tem projetado a sua cidade afetiva. A cidade é, antes de tudo, parte de nossa experiência humana. Ela é sonho, alegria e tristeza.
Não se sabe muito bem quais são as razões pelas quais uma cidade nasce e cresce. Também não se tem um motivo claro pela qual se identifica o momento em que uma cidade começa a morrer.
Esse é um dos grandes mistérios da humanidade. Entre o nascimento, o apogeu e – em muitos casos – a derrocada, existem multiplicidades inimagináveis de fatores, muitos dos quais não dependem exclusivamente da vontade das pessoas.
O dinamismo das cidades é imprevisível. As ruas e avenidas muitas vezes não obedecem a vontade e o planejamento de seus governantes. O imponderável prevalece. Quantas ruas foram feitas para se morar e, de repente, transformaram-se em grandes shopping Centers a céu aberto?
Se fosse possível estabelecer uma cadeia de eventos compreensíveis teríamos que imaginar que Campo Grande começou a nascer assim que a Guerra do Paraguai findou-se no ano de 1870.
Aparentemente, parece que são duas coisas diferentes, mas hoje sabemos que não. Sem aquele fato, não teria acontecido a fundação da cidade. Estranho, não? Só que tudo tem uma lógica intrínseca que não passa pela nossa cabeça.
Como se sabe, depois de estudos profundos sobre esse evento marcante na história do Brasil, o trauma provocado pelas batalhas que dizimaram milhares de pessoas nos principais países envolvidos foi imenso e, logo que se contabilizou a proporção dessa tragédia humana, governos tiveram a convicção de que o território brasileiro deveria expandir na direção dos sertões, sobretudo nas grandes faixas que fazem divisa com Uruguai, Argentina, Paraguai, Bolívia, Venezuela e as Guianas.
Era preciso ocupar, delimitar o espaço nacional, garantir que o território não fosse permeável nem inseguro. Isso faz parte da vida das Nações. Não existe vácuo na política.
Como se sabe, a formação do Brasil deu-se no mundo dos caranguejos, no nosso vasto litoral. Vivemos muito tempo perto do mar não avançamos para dentro das matas, rumo ao oeste inóspito e perigoso.
Esse é jeito simples e fácil de contar essa história. Os índios, por exemplo, contam-na de outra maneira. Cada narrativa tem seu peso. Mas existem fatos que sobrepõem os indivíduos e assim é melhor traçar um plano de vôo que explique mais os grandes movimentos do que as ações pontuais (sem, com isso, desmerecer nenhum ponto de vista).
Esse processo levou que se desenhasse uma estratégia de ocupação populacional sistemática das regiões fronteiriças. Tanto que, terminada a Guerra do Paraguai, 29 anos depois nascia Campo Grande, decorrente de um processo que requalifica o movimento de ocupação do Oeste (Corumbá, Ladário, Nioaque, Miranda, etc.), do norte (Cuiabá, Camapuã, etc.) e do Leste (Paranaíba, Inocência etc).
De acordo com historiadores, os primeiros habitantes de Campo Grande vieram do Triângulo Mineiro, somando-se a outros que saíram do interior paulista, do Rio Grande do Sul e até do Paraguai.
O jornal Folha da Serra, em 26 de agosto de 1935, três décadas depois do nascimento da cidade, registrou, em artigo escrito por V. Almeida, comemorando 36 anos de emancipação política de Santo Antônio de Campo Grande, dando grande destaque ao fato do vilarejo ter-se desligado “definitivamente” da Comarca de Miranda, “de onde recebia o influxo das leis e resoluções do Governo”, registrando, dessa forma, que a localidade ingressava num processo de rápidas transformações.
“Além disso – complementa o texto – do Triângulo mineiro vinham os boiadeiros que, palmilhando a estrada aberta pela Divisão Camisão, aqui estacionavam com suas comitivas para a compra de gado que tangiam rumo à Santana do Paranaíba até Uberaba e outros centros pecuários daquelas zonas das Gerais”.
“Por essa época – complementa - já a povoação era bastante desenvolvida devido ao número crescente do rebanho bovino nas maravilhosas campanhas da Vacaria, povoada quase só por criadores que negociavam com a vizinha República do Paraguai”.
Tudo era gado e dinheiro. Somando as esparsas informações da época, depreende-se que Campo Grande transformou-se numa pequena vila, com casas e ruas dispersas, por causa de sua posição geográfica e também pelo seu manancial aquífero, formado pelos córregos Prosa e Segredo, além de dezenas pequenos veios que desciam das platitudes da grande planície até à nossa atual área central.
A esse dado se somaria também, 15 anos depois, algo mais importante e fundamental para que a cidade ganhasse um impulso determinante: a chegada da estrada de ferro Noroeste do Brasil (em maio de 19014), o que colocou Campo Grande no centro de um processo vertiginoso de crescimento econômico e populacional, graças à importância adquirida por Corumbá, visto a intensa navegabilidade do rio Paraguai.
Mesmo assim, nos próximos 30 anos o complexo urbano manteve-se modesto, com adensamento médio, com pouco mais de 2 mil habitantes (apesar de uma população transitória), com uma economia pequena, focada em comércio de trocas, venda a fiado e escambo.
Olhando fotografias da época e lendo relatos do período percebia-se que a cidade já tinha um modesto frenesi latente, embora crises externas, guerras mundiais, recessões econômicas, mostravam o interior brasileiro como um dos lugares mais atrasados e precários dessa parte do mundo.
Foi assim que, tempos depois, chegaram japoneses, libaneses, italianos, enfim, gente de toda a parte do mundo, gerando mudanças efetivas na língua e nos costumes de Campo Grande. Assim funcionava o mundo globalizado daquela época.
Todo esse quadro mudaria radicalmente entre os anos 60 e 70. Com as expectativas geradas com o desmembramento territorial de Mato Grosso e a criação de Mato Grosso do Sul - e acrescentando o fato de que o Brasil passaria a experimentar o fenômeno de intensificação da migração campo-cidade – Campo Grande passaria a conhecer uma explosão demográfica inédita.
É dispensável para esse relato descrever o pano de fundo desses acontecimentos como a guerra fria, o ambiente ideológico, as sucessivas ditaduras, o planejamento centralizado e tantos outros fatores que influíram na formatação da realidade de então.
A historiografia é rica em registros e esse trabalho não tem a pretensão de ser uma análise pronta e acabada de um longo período entre o fim do século XIX, XX e XXI.
O propósito aqui é situar Campo Grande num contexto para que possamos compreender como a cidade se transformou no que é, para que se possa vislumbrar o que ela poderá ser em médio e longo prazos.
Por isso, é importante saber que em poucas décadas a população campo-grandense dobrou. De acordo com números do IBGE, na década de 30 a cidade tinha 30 mil habitantes. Em 1960, mais de 75 mil.
De repente, uma cidade “pequena” transformou-se em metrópole regional. O homem chegou à lua. Entre 1970 e 80 registrou-se que cidade de 140 mil habitantes passou a ter 290 mil em menos de dez anos. Num tempo curto, a cidade ganhou 150 mil habitantes, um fenômeno raro em termos de evolução demográfica.
Uma Universidade Federal foi implantada e as perspectivas educacionais mudaram de patamar.
E assim continuou. Tudo muito rápido. Assustador, inclusive, quando se analisa os números de ontem com lentes de hoje.
Campo Grande tem atualmente mais de 850 mil habitantes. Esses saltos demográficos, contudo, ficaram devendo para uma infra-estrutura urbana adequada, dando origem a problemas antes desconhecidos. Isso ocorre em muitos lugares do mundo, mas aqui foi algo excepcional e surpreendente.
O inchaço populacional, o crescente aumento da frota de veículos, a mudança do eixo econômico, a falta de investimentos públicos, enfim, o crescimento de demandas inéditas em decorrência de uma nova realidade nacional e internacional, colocou Campo Grande num sistema disfuncional de desenvolvimento que, cumulativamente, contribuiu para que a cidade seja hoje o que ela é, com suas características positivas e negativas.
É verdade que nos anos 90 e 2000 houve um arrefecimento desse crescimento acelerado. Mas as questões problemáticas já estavam postas. Não se quadriplica o tamanho de uma população (hoje quase a metade de Mato Grosso do Sul) sem que problemas de moradia, energia, saneamento básico, urbanização, educação, saúde, etc., transbordem por todos os lados.
Mas sigamos em frente: uma cidade que cresce muito rápido gera demandas acima da capacidade de seus recursos. Alguns deles permanecem no tempo. Por mais que haja identificação, diagnósticos e investimentos, eles se fixam no eixo funcional da cidade e não desatam o nó para que saiamos da chamada “situação de atraso” para um quadro de “modernidade plena”.
Por exemplo: o crescimento desigual entre a área central e os bairros distantes (criando um imenso entorno de vazios urbanos) ao longo do tempo provocou déficits de saneamento básico, coleta de lixo, entre outros, impactando de maneira negativa na saúde da população até os dias atuais.
Por isso, em qualquer pesquisa que se faça o item “saúde” sempre aparece como principal problema a ser resolvido pelo poder público. Trata-se de questão multifatorial, é verdade, mas a percepção permanece, apesar dos avanços dos últimos anos.
Em outras áreas o mesmo se registrou. Carências num setor terminaram levando, numa reação em cadeia, a deficiências estruturais em outros. A cumulatividade, de certa forma, foi pautando as diversas administrações da cidade e cada uma delas foi avançando ou retroagindo em torno das mesmas equações.
Mesmo assim, a maioria da população acha a cidade uma jóia. Mas é preciso melhorar cada vez mais.
Nesse aspecto, à medida que o crescimento foi se efetivando a cidade foi sendo planejada (às vezes com eficiência, outras vezes nem tanto), com ênfase aos conceitos modernizadores que vinham marcando o País de acordo com os desdobramentos políticos de cada época.
Vem daí o arruamento largo, o desenho das grandes avenidas, a implantação de parques em vários pontos da cidade, arborização intensa, enfim, o desenho arquitetônico de uma cidade de porte médio no interior do País que olhava para o futuro. Aliás, esse sempre um aspecto positivo destacado por todos aqueles que pela primeira vez visitam a cidade.
Campo Grande, neste aspecto, sempre foi uma cidade bonita, limpa, preocupada com higienização urbana. Isso sempre foi um ganho para a melhoria de nossos padrões de qualidade de vida. Por isso, nosso Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é sempre crescente.
Na década de 80, assim que a cidade foi elevada à condição de Capital de Estado, um novo fluxo migratório começou a dar o tom na nossa dinâmica urbana, decorrente da propaganda de que a nova unidade federativa que ora estava sendo criada teria uma estrutura “modelar”.
De fato, transformar-se numa cidade-administrativa atraiu gente de toda a parte do Brasil, dando-lhe uma configuração mais cosmopolita, criando maior diversidade de tendências culturais, formando uma população mais ativa, que requeria melhor qualidade de vida.
Nesse momento, Campo Grande já estava integrada ao grande eixo do desenvolvimentismo brasileiro, ligada por rodovias asfaltadas, linhas de transmissão, linha férrea e tráfego aéreo, enfim, os vetores da chamada “modernização” estruturante que marcaram os anos 70/80.
Obras como a implantação do Parque dos Poderes e criação de órgãos federais terminaram atraindo capital e mão-de-obra para Campo Grande de maneira expressiva.
Claro que o processo de desigualdade social acompanhou todos esses acontecimentos. Ainda assim, a cidade formou uma forte economia de prestação de serviços, além de criar uma base sustentável para receber indústrias de pequeno, médio e grande porte, sempre com grande empuxo das atividades do agro, presente em todas as fases da nossa história.
Campo Grande viveu grandes saltos e recuos. Não se pode descartar que a economia brasileira tem grande força de influência na realidade local. Mas mesmo assim, comparando-se com números gerais temos inflação mais baixa, menor índice de desemprego, uma vida mais saudável, enfim, a cidade pontua como uma das melhores capitais brasileiras para se viver em tempos como os atuais.
É preciso também observar que em período recente várias administrações de cunho populista, com troca de prefeitos em sucessivas crises, escândalos de corrupção e falta de aptidão para o adequado gerenciamento da cidade, criou uma força do atraso que permanece até os dias atuais.
Traçando uma linha histórica desde o período de sua fundação, pode-se vislumbrar a ocorrência de oscilações para o alto e para baixo, sobretudo no quesito de infra-estrutura.
Entre os anos 30 e 50 constata-se um padrão uniforme de desenvolvimento urbano. Entre 60 e 80 há picos elevados de crescimento econômico. Depois disso há uma espécie de zigue-zague, seguindo um relativo padrão de normalidade apesar da disfuncionalidade econômica do País.
A partir do ano 2000, Campo Grande enquadrou-se numa espécie de estabilidade sócio-econômica, registrando forte expansão imobiliária, verificando um aumento da malha asfáltica nos chamados entornos das áreas centrais.
Ou seja: a cidade começou a adensar-se nas suas zonas intermediárias, deixando para trás uma urbanização centro-bairro distante. Isso mudou a cara de Campo Grande.
No período pós-Plano Real o crescimento da população equilibrou-se, na faixa de 3% ao ano (diferente dos anos 70, que chegou a 16% anuais), o consumo expandiu-se e o setor de serviço cresceu ao ponto de representar 68% do PIB local. A movimentação de veículos aumentou e as demandas do transporte coletivo tornaram-se mais complexas.
A primeira década do ano 2000, a Capital de Mato Grosso do Sul – já vivendo um refluxo dos anos euforia – enquadrou-se como cidade de grande porte, embora com vários gargalos para serem solucionados. Com uma população 785 mil habitantes, de acordo com o censo do IBGE, registrou-se uma variação de crescimento, em uma década, de 18,6%, diferente da década anterior cuja variação havia sido registrada em 26%.
Noutras palavras, a cidade estava em fase de desaceleração. Para alguns especialistas, na verdade, isso significava que a cidade ganhava qualificação para equilibrar suas demandas sociais com os orçamentos dos investimentos públicos e privados adequados.
Na linha histórica CG estava pronta, novamente, para mudar de patamar em sua trajetória progressiva. Mas a partir de 2013 a cidade escolheu fazer uma ruptura de natureza eleitoral, ingressando, logo após, num período de crises políticas sucessivas, com cassação e troca dos prefeitos eleitos.
Esse processo mostrou ao longo do tempo ser extremamente danoso para as finanças públicas e para o encaminhamento de projetos de melhoria de infraestrutura, atingindo frontalmente os indicadores sociais.
Todos os setores – saúde, educação, obras viárias, atendimento público, etc. – entraram em fase regressiva. Em quatro anos de crise municipal (que coincidiu com o início da fase recessiva da economia brasileira) levou a administração quase à falência.
A sensação imediata foi a perda de confiança e a redução dos investimentos. As finanças públicas baquearam. O empresariado retraiu-se. Os servidores públicos viram-se na contingência de viver constantes atrasos salariais. As instituições viviam um período de permanente conflito. O impacto na autoestima dos cidadãos foi imediato. A polarização política ganhou espaço preponderante na mídia e nas redes sociais.
A cidade atravessou 4 anos em estado de suspensão permanente, sem ter claro no horizonte quem seria seu mandatário no dia seguinte. Indispensável dizer que Campo Grande viveu sua chamada Era dos Escândalos, tornando quase impossível a administração dos seus recursos.
Esse fenômeno vai além de seu tempo de duração. As consequências político-econômico-culturais são impossíveis de serem medidas até hoje. O fato concreto é que a história (a micro e a macro) pode ser sentida em vários segmentos da vida da cidade, na transversalidade do tempo e nos acasos da vida. O passado recente reverbera no presente, com seus dilemas e suas incertezas. Nada do que acontece numa cidade encerra um fato em sim mesmo.
Olhando fotografias da época e lendo relatos do período percebia-se que a cidade já tinha um modesto frenesi latente, embora crises externas, guerras mundiais, recessões econômicas, mostravam o interior brasileiro como um dos lugares mais atrasados e precários dessa parte do mundo.
Foi assim que, tempos depois, chegaram japoneses, libaneses, italianos, enfim, gente de toda a parte do mundo, gerando mudanças efetivas na língua e nos costumes de Campo Grande. Assim funcionava o mundo globalizado daquela época.
Todo esse quadro mudaria radicalmente entre os anos 60 e 70. Com as expectativas geradas com o desmembramento territorial de Mato Grosso e a criação de Mato Grosso do Sul - e acrescentando o fato de que o Brasil passaria a experimentar o fenômeno de intensificação da migração campo-cidade – Campo Grande passaria a conhecer uma explosão demográfica inédita.
É dispensável para esse relato descrever o pano de fundo desses acontecimentos como a guerra fria, o ambiente ideológico, as sucessivas ditaduras, o planejamento centralizado e tantos outros fatores que influíram na formatação da realidade de então.
A historiografia é rica em registros e esse trabalho não tem a pretensão de ser uma análise pronta e acabada de um longo período entre o fim do século XIX, XX e XXI.
O propósito aqui é situar Campo Grande num contexto para que possamos compreender como a cidade se transformou no que é, para que se possa vislumbrar o que ela poderá ser em médio e longo prazos.
Por isso, é importante saber que em poucas décadas a população campo-grandense dobrou. De acordo com números do IBGE, na década de 30 a cidade tinha 30 mil habitantes. Em 1960, mais de 75 mil.
De repente, uma cidade “pequena” transformou-se em metrópole regional. O homem chegou à lua. Entre 1970 e 80 registrou-se que cidade de 140 mil habitantes passou a ter 290 mil em menos de dez anos. Num tempo curto, a cidade ganhou 150 mil habitantes, um fenômeno raro em termos de evolução demográfica.
Uma Universidade Federal foi implantada e as perspectivas educacionais mudaram de patamar.
E assim continuou. Tudo muito rápido. Assustador, inclusive, quando se analisa os números de ontem com lentes de hoje.
Campo Grande tem atualmente mais de 850 mil habitantes. Esses saltos demográficos, contudo, ficaram devendo para uma infra-estrutura urbana adequada, dando origem a problemas antes desconhecidos. Isso ocorre em muitos lugares do mundo, mas aqui foi algo excepcional e surpreendente.
O inchaço populacional, o crescente aumento da frota de veículos, a mudança do eixo econômico, a falta de investimentos públicos, enfim, o crescimento de demandas inéditas em decorrência de uma nova realidade nacional e internacional, colocou Campo Grande num sistema disfuncional de desenvolvimento que, cumulativamente, contribuiu para que a cidade seja hoje o que ela é, com suas características positivas e negativas.
É verdade que nos anos 90 e 2000 houve um arrefecimento desse crescimento acelerado. Mas as questões problemáticas já estavam postas. Não se quadriplica o tamanho de uma população (hoje quase a metade de Mato Grosso do Sul) sem que problemas de moradia, energia, saneamento básico, urbanização, educação, saúde, etc., transbordem por todos os lados.
Mas sigamos em frente: uma cidade que cresce muito rápido gera demandas acima da capacidade de seus recursos. Alguns deles permanecem no tempo. Por mais que haja identificação, diagnósticos e investimentos, eles se fixam no eixo funcional da cidade e não desatam o nó para que saiamos da chamada “situação de atraso” para um quadro de “modernidade plena”.
Por exemplo: o crescimento desigual entre a área central e os bairros distantes (criando um imenso entorno de vazios urbanos) ao longo do tempo provocou déficits de saneamento básico, coleta de lixo, entre outros, impactando de maneira negativa na saúde da população até os dias atuais.
Por isso, em qualquer pesquisa que se faça o item “saúde” sempre aparece como principal problema a ser resolvido pelo poder público. Trata-se de questão multifatorial, é verdade, mas a percepção permanece, apesar dos avanços dos últimos anos.
Em outras áreas o mesmo se registrou. Carências num setor terminaram levando, numa reação em cadeia, a deficiências estruturais em outros. A cumulatividade, de certa forma, foi pautando as diversas administrações da cidade e cada uma delas foi avançando ou retroagindo em torno das mesmas equações.
Mesmo assim, a maioria da população acha a cidade uma jóia. Mas é preciso melhorar cada vez mais.
Nesse aspecto, à medida que o crescimento foi se efetivando a cidade foi sendo planejada (às vezes com eficiência, outras vezes nem tanto), com ênfase aos conceitos modernizadores que vinham marcando o País de acordo com os desdobramentos políticos de cada época.
Vem daí o arruamento largo, o desenho das grandes avenidas, a implantação de parques em vários pontos da cidade, arborização intensa, enfim, o desenho arquitetônico de uma cidade de porte médio no interior do País que olhava para o futuro. Aliás, esse sempre um aspecto positivo destacado por todos aqueles que pela primeira vez visitam a cidade.
Campo Grande, neste aspecto, sempre foi uma cidade bonita, limpa, preocupada com higienização urbana. Isso sempre foi um ganho para a melhoria de nossos padrões de qualidade de vida. Por isso, nosso Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é sempre crescente.
Na década de 80, assim que a cidade foi elevada à condição de Capital de Estado, um novo fluxo migratório começou a dar o tom na nossa dinâmica urbana, decorrente da propaganda de que a nova unidade federativa que ora estava sendo criada teria uma estrutura “modelar”.
De fato, transformar-se numa cidade-administrativa atraiu gente de toda a parte do Brasil, dando-lhe uma configuração mais cosmopolita, criando maior diversidade de tendências culturais, formando uma população mais ativa, que requeria melhor qualidade de vida.
Nesse momento, Campo Grande já estava integrada ao grande eixo do desenvolvimentismo brasileiro, ligada por rodovias asfaltadas, linhas de transmissão, linha férrea e tráfego aéreo, enfim, os vetores da chamada “modernização” estruturante que marcaram os anos 70/80.
Obras como a implantação do Parque dos Poderes e criação de órgãos federais terminaram atraindo capital e mão-de-obra para Campo Grande de maneira expressiva.
Claro que o processo de desigualdade social acompanhou todos esses acontecimentos. Ainda assim, a cidade formou uma forte economia de prestação de serviços, além de criar uma base sustentável para receber indústrias de pequeno, médio e grande porte, sempre com grande empuxo das atividades do agro, presente em todas as fases da nossa história.
Campo Grande viveu grandes saltos e recuos. Não se pode descartar que a economia brasileira tem grande força de influência na realidade local. Mas mesmo assim, comparando-se com números gerais temos inflação mais baixa, menor índice de desemprego, uma vida mais saudável, enfim, a cidade pontua como uma das melhores capitais brasileiras para se viver em tempos como os atuais.
É preciso também observar que em período recente várias administrações de cunho populista, com troca de prefeitos em sucessivas crises, escândalos de corrupção e falta de aptidão para o adequado gerenciamento da cidade, criou uma força do atraso que permanece até os dias atuais.
Traçando uma linha histórica desde o período de sua fundação, pode-se vislumbrar a ocorrência de oscilações para o alto e para baixo, sobretudo no quesito de infra-estrutura.
Entre os anos 30 e 50 constata-se um padrão uniforme de desenvolvimento urbano. Entre 60 e 80 há picos elevados de crescimento econômico. Depois disso há uma espécie de zigue-zague, seguindo um relativo padrão de normalidade apesar da disfuncionalidade econômica do País.
A partir do ano 2000, Campo Grande enquadrou-se numa espécie de estabilidade sócio-econômica, registrando forte expansão imobiliária, verificando um aumento da malha asfáltica nos chamados entornos das áreas centrais.
Ou seja: a cidade começou a adensar-se nas suas zonas intermediárias, deixando para trás uma urbanização centro-bairro distante. Isso mudou a cara de Campo Grande.
No período pós-Plano Real o crescimento da população equilibrou-se, na faixa de 3% ao ano (diferente dos anos 70, que chegou a 16% anuais), o consumo expandiu-se e o setor de serviço cresceu ao ponto de representar 68% do PIB local. A movimentação de veículos aumentou e as demandas do transporte coletivo tornaram-se mais complexas.
A primeira década do ano 2000, a Capital de Mato Grosso do Sul – já vivendo um refluxo dos anos euforia – enquadrou-se como cidade de grande porte, embora com vários gargalos para serem solucionados. Com uma população 785 mil habitantes, de acordo com o censo do IBGE, registrou-se uma variação de crescimento, em uma década, de 18,6%, diferente da década anterior cuja variação havia sido registrada em 26%.
Noutras palavras, a cidade estava em fase de desaceleração. Para alguns especialistas, na verdade, isso significava que a cidade ganhava qualificação para equilibrar suas demandas sociais com os orçamentos dos investimentos públicos e privados adequados.
Na linha histórica CG estava pronta, novamente, para mudar de patamar em sua trajetória progressiva. Mas a partir de 2013 a cidade escolheu fazer uma ruptura de natureza eleitoral, ingressando, logo após, num período de crises políticas sucessivas, com cassação e troca dos prefeitos eleitos.
Esse processo mostrou ao longo do tempo ser extremamente danoso para as finanças públicas e para o encaminhamento de projetos de melhoria de infraestrutura, atingindo frontalmente os indicadores sociais.
Todos os setores – saúde, educação, obras viárias, atendimento público, etc. – entraram em fase regressiva. Em quatro anos de crise municipal (que coincidiu com o início da fase recessiva da economia brasileira) levou a administração quase à falência.
A sensação imediata foi a perda de confiança e a redução dos investimentos. As finanças públicas baquearam. O empresariado retraiu-se. Os servidores públicos viram-se na contingência de viver constantes atrasos salariais. As instituições viviam um período de permanente conflito. O impacto na autoestima dos cidadãos foi imediato. A polarização política ganhou espaço preponderante na mídia e nas redes sociais.
A cidade atravessou 4 anos em estado de suspensão permanente, sem ter claro no horizonte quem seria seu mandatário no dia seguinte. Indispensável dizer que Campo Grande viveu sua chamada Era dos Escândalos, tornando quase impossível a administração dos seus recursos.
Esse fenômeno vai além de seu tempo de duração. As consequências político-econômico-culturais são impossíveis de serem medidas até hoje. O fato concreto é que a história (a micro e a macro) pode ser sentida em vários segmentos da vida da cidade, na transversalidade do tempo e nos acasos da vida. O passado recente reverbera no presente, com seus dilemas e suas incertezas. Nada do que acontece numa cidade encerra um fato em sim mesmo.