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Enquanto a esquerda não souber lidar com o bolsonarismo, vai perder sempre





Você deve ter acompanhado o ato bolsonarista (que alguns resolveram intitular de tributo ao golpismo), no último domingo, (25/02) na Avenida Paulista, em São Paulo. Foi um fato político que mexeu com as nossas cabeças durante a semana. Como envolveu um grande público num espaço delimitado, com uma variedade imensa de tendências partidárias, religiosas e ideológicas, para quem vive de imagens e comentários foi um bálsamo.

No primeiro momento - como era de se esperar - discutiu-se na mídia e nas redes a quantidade de pessoas. O levantamento da USP calculou 180 mil (foi rechaçada por motivos óbvios). A Polícia Militar de SP chutou (não oficialmente) 750 mil. Teve gente mais animada que falou em 2 milhões de circulantes. Enfim, o embate entre petistas e bolsonaristas - todos travestidos de especialistas em estatísticas - procuravam impor o número que lhes favorecesse politicamente.

O assunto só se deu por encerrado quando painho deu uma entrevista reconhecendo que tinha muita gente e que "aquilo" não podia ser desprezado. Ele reconheceu o poder das imagens: bastava ver as cenas das TVs e Jornais. De minha parte - não sei você - "muita gente" me satisfaz porque havia uma massa compacta num único local vestindo as prosaicas camisetas verde-amarelas.

Numa segunda etapa, as redes foram invadidas pelo microcosmo da manifestação. Daí nasce todo tipo de oportunismo. Dependendo a bolha que você segue o olhar narrativo diverge uma da outra. A esquerda e suas ramificações mostravam o lado anedótico e folclórico das franjas bolsonaristas. Ali era só trolagem (como se diz), buscando destacar a parte específica para desqualificar o todo. O mesmo teria acontecido - com sinal inverso - se a manifestação fosse da esquerda. Não tem santo em nenhum campo.

Se você está lembrado teve o discurso de Michelle Bolsonaro na linha das igrejas pentecostais, que certamente poucos presentes no local ouviram (o espaço aberto dificulta a propagação de um som límpido, e o ambiente é muito distrativo para alguém prestar atenção), mas foram posteriormente editado e divulgados para melhor compreensão de todos. 

Muita gente torceu o nariz e teve até madames indignadas e assustadas com o modelo retrô que Michelle idealiza para as mulheres. Tem alguma coisa de idade média ali, é verdade, fora do alcance da realidade do mundo que vivemos. Michelle é uma espertalhona que sabe falar para sua turma. Mas como ainda existe liberdade relativa de expressão no Brasil, vamos seguir com o féretro...

Falou Malafaia, Bolsonaro, Magno Malta etc - todos fazendo juramento de fé na democracia e na liberdade. Palanque aceita tudo.

Você há de concordar comigo - essa inclusive foi uma percepção compartilhada entre a maioria dos analistas sérios - que Bolsonaro e sua franja política mostraram força, mesmo que seu discurso tenha sido mais cauteloso do que de costume. 

Muitos disseram que isso não vai interferir no julgamento do processo que corre no STF por tentativa de golpe de Estado. Por enquanto, há um consenso no establishment de que seu lugar é na cadeia. A dúvida é se isso vai transformá-lo em poeira ou criar uma "vitima" poderosa de perseguição política no Brasil e no mundo, sobretudo diante perspectiva de Trump ser eleito presidente dos EUA.

Se você gosta de futurologia, desenhe na sua cabeça algum cenário que poderá ser elucubrado no porvir.

Mas voltando à manifestação: na Avenida Paulista o publico participante não era somente da extrema-direita, óbvio, mas uma verdadeira mixórdia de religiosos e militantes, como acontece em toda e qualquer manifestação.

Se você um dia leu o famoso livro do sociólogo alemão Norbert Elias "A Sociedade dos Indivíduos" encontrará ali algumas ideias básicas sobre como é difícil ter um plano geral sobre grandes eventos de massa como esse.

Desculpe, mas sou obrigado a transcrever uma citação do livro de N. Elias, que diz: "Dispomos dos conhecidos conceitos de 'indivíduo' e 'sociedade', o primeiro dos quais se refere ao ser humano singular como se fora uma entidade existindo em completo isolamento, enquanto o segundo costuma oscilar entre duas ideias opostas, mas igualmente enganosas. A sociedade é entendida, quer como mera acumulação, coletânea somatória e desestruturada de muitas pessoas individuais, quer como objeto que existe para além dos indivíduos e não é passível de maior explicação. Neste último caso, as palavras de que dispomos, os conceitos que influenciam decisivamente o pensamento e os atos das pessoas que crescem na esfera delas, fazem com que o ser humano singular, rotulado de indivíduo, e a pluralidade das pessoas, concebida como sociedade, pareçam ser duas entidades ontologicamente diferentes."

Analisando dessa forma, a manifestação de massa não é orgânica. Mas na política é mais fácil olhar como se tudo fosse uma coisa só. Faz parte do repertório da simplificação e da preguiça do pensamento classificar tudo como "extrema-direita", "evangélicos atrasados", "malucos da terra plana que não sabem que o judaísmo não é cristianismo", "idiotas que cantaram a música de Geraldo Vandré sem compreender o contexto histórico", "golpistas com sangue nos olhos" etc, etc, etc.

É rotulando desse jeito que a esquerda e os progressistas estão dançando. A falta de sutileza é uma armadilha perigosa. O sentimento anti-sistema vai crescendo junto com o fascismo, à medida que o ressentimento social se fortalece. Não gosto de escrever essas coisas, mas é isso que estou observando, sem ter a compreensão adequada de meus pares.

É fácil fazer piadas com grupelhos de fanáticos e depois inseri-los no conjunto dos participantes como se todos fizessem parte do mesmo barro. A esquerda & satélites jogaram pedra pelas redes a semana inteira a fim de desqualificar o evento, transformando-o numa caricatura de militantes golpistas desarvorados. 

Tudo isso pode ser muito divertido, mas contém um elemento de tática política que tem se mostrado equivocada.

Enquanto o cidadão é um participante anônimo no meio da multidão, ou seja, "sociedade", quando ele vai pra casa se transforma em "indivíduo". E como um ser unicelular ele busca vincular-se a outros seres para formar um corpo pluricelular, quer seja dentro de uma igreja, no bar com amigos, nos encontros interpessoais da família etc. Nesse momento, forma-se coesão ou estabelece-se a polarização, com as opiniões divergentes.


As imprecações dos polos opostos tentam atingir seus objetivos: manter a coesão política de cada bolha e solidificar as convicções de que você "está do lado certo da história". Cada grupo luta por seus princípios e tenta impor sua visão de mundo ao outro. Geralmente, a soma disso tudo é zero.

Digamos que se você circulasse pela Avenida Paulista, no último domingo, como um turista ocasional: qual seria sua impressão? Perguntei isso para amigos e familiares que moram em São Paulo. A variedade de opinião é inalcançável. É impossível dar um caráter de levantamento científico a essas variadas impressões.

Mas tive a percepção de um consenso: o público era formado por bolsonaristas (muitos da extrema-direita), classes médias com seus vários tons (a maioria à direita), anti-petistas e aqueles a quem denominamos centro político (os isentões que fingem indiferença). A esquerda presente estava ali representada por jornalistas (nem todos), intelectuais universitários (preparando alguma pesquisa, certamente) e observadores políticos com cara de paisagem.

Se hoje sabemos que Lula foi eleito pela guinada do centro que aderiu à sua candidatura por causa da chamada "frente ampla" (um engodo), essa turma deve estar se perguntando por que o PT está hostilizando tanto aqueles que lhes deu os votos necessários para derrotar o celerado do Bolsonaro?

Não será chamando essa gente de "atrasada", "gado", "negacionista", racista e homofóbica (a difusão de memes é uma praga divisiva) que será viável e possível neutralizar a polarização e pacificar o País.

A não ser que a tática seja exatamente essa: incitar a polarização, criar a cizânia, xingar, demonizar aqueles que não compactuam com a regra do pensamento único, jogar todo mundo, indiscriminadamente, no buraco negro do Alexandre de Moraes - o herói do golpe reverso.

Nas eleições municipais que se aproximam veremos se esse modelo funcionará, pois o mundo real demonstra que a direita continua avançando, há muita conversão do centro em sua direção, e os progressistas liberais e a turma da socialdemocracia começam a se sentir incomodados com a língua solta de Lula e a arrogância oceânica do PT.

Veremos...