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Dante Filho: Tempo



Essa é uma história em que o tempo acontece dentro do tempo. O passado, o presente e o futuro misturam-se numa unicidade incompreensível. 

Podemos entrar e sair de uma misteriosa esfera temporal para outra, em múltiplas dimensões, intercalando situações, vivências, dramas e alegrias, sem que isso, contudo, signifique magia ou ciência. 

A natureza é assim: preenchida pela óbvia vontade de si mesma.

Falamos aqui do tempo fluído, perfazendo-se de acordo com a nossa vontade, liquefazendo-se conforme o nosso olhar, adequando-se aos nossos movimentos corporais. 

Falamos do domínio do tempo dentro dos espaços possíveis de serem verificados, vividos e tocados.

Falamos da experiência do que somos no tempo, sem a qual não haveria a memória intercalada dos instantes que habitamos no fluxo da existência.

Nosso personagem tem 60 anos. O nome dele não importa. Ele acha que viveu demais. Está um pouco cansado. Rapidamente, como se atravessasse da sala para o quarto, volta à sua infância; agora, ele tem seis anos - e  conversa com sua mãe. O diálogo é rápido e ríspido, ela precisa sair para trabalhar, ele apenas sente uma leve dor no peito. É tomado por uma sensação de abandono excruciante.

Em seguida, dá uns passos à frente, como se fosse em direção à cozinha, e o encontra tomando café, ultrapassando os 80 anos, taciturno, balbuciando consigo mesmo, tentando compreender a fatuidade e o desejo, a imarcescível dor de ser a pessoa que foi um dia, ouvindo o fúnebre som de si mesmo. 

A cena é triste. Por isso, ele segue adiante, caminha até a sala para encontrá-lo deitado no sofá lendo poemas de Maiakovski, na flor da juventude, totalmente nu, imaginando mulheres de dentes nacarinos, seios rígidos, colo em chamas, pernas firmes enlaçando seu ventre, braços abertos, tudo envolto em chamas e revolução. 

Ele ri. Decide sair um pouco, olhar a calçada, ver sua própria chegada em casa depois de um dia de trabalho, ver sua mulher, seus filhos, sua cadelinha Lucy, seu corpo de 35 anos caindo sôfrego numa cadeira de vime, um gole de Gim, a televisão ligada, o olhar baço dirigindo-se para o nada. 

Ele fica parado observando aquele momento. Em silêncio. Sem fazer qualquer juízo que pudesse atrapalhar sua observação daquela imagem confortável, familiar, com cheiro de sabonete de alfazema, sopa de legumes na panela, pãozinho quente sobre a mesa, risos infantis no quarto, com a noite chegando e os primeiros cris cris tomando conta da varanda. 

Depois ele vai para a rua em direção ao centro. Entra num bar e o vê conversando com Isabela, ambos sorrindo, macarrão no prato, copos de vinho pela metade, alegres, vivos, sonoros, até que ele levanta o braço para explicar melhor sua história banal e derruba o copo sobre si mesmo, a mancha viva sobre sua camisa branca. Ele e ela estão com 22 anos.

Ele pede desculpas e vai ao banheiro. Quando entra, a imagem é outra: ele está num beco de Lisboa, tentando encontrar um endereço de uma velha tia, tentando olhar para os números azulejados sem conseguir enxergar direito cada anagrama, na penumbra de uma tarde fria. 

Quando ele está perdendo as esperanças, à sua frente uma luz se acende. Era Luzia. Ele sorri aberto, a abraça forte - e entra. Quando percorre o longo corredor na direção da saleta de visitas, sente o forte cheiro de ervas e peixe cozido, na azáfama de uma ruela de Pequim.  

Ele está de mãos dadas com Zue-Tsu, sendo levado para um quartinho sujo, quente e fétido, onde, minutos depois, estará fazendo sexo obrigatório, com raiva de si mesmo, perdido aos 47 anos numa cidade estranha, inebriado com o sucesso de seus negócios. 

Sai pelas ruas de madrugada, enojado com o cheiro de esgoto, a fumaça amarelada, até alcançar o hotel onde está hospedado. Entra no elevador sentindo tonturas, é tomado por uma vertigem momentânea, atravessa um imenso corredor e finalmente chega ao seu quarto. 

Ao entrar, sente que tudo está limpo, a cama é confortável, o cheiro é agradável, não escuta o barulho das ruas, cai na cama e dorme profundamente. 

Nunca mais acorda.