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Dante Filho: Sobre amores e desafetos


Outro dia perdi um amigo repentinamente. Tive que ir ao velório porque há mais de 25 anos tínhamos uma boa amizade e senti que devia abraçar a esposa, filhos, irmãos, enfim, fazer um gesto de solidariedade num momento de dor.

Confesso que não gosto de acontecimentos fúnebres. Provavelmente, deixaria de ir até ao meu próprio velório, caso pudesse intervir a meu favor.

Mas foi no enterro de meu amigo que tive uma percepção iluminada do que vem acontecendo à minha volta. Quando cheguei, senti olhares hostis, bocas entortadas, rostos virados de inúmeros conhecidos que não via há muitos anos. Também senti afeto de muitos outros, que me recepcionaram com candura e generosidade.

(Vou desconsiderar as hipocrisias sociais necessárias desses momentos desconfortáveis).

Logo vi que muitas amigas de longa data se transformaram em senhoras interessantes – muitas egressas dos loucos anos 70 e 80 -, a maioria viúva, divorciada, recasada, enfim, quase todas percorrendo a toada em que se diz que a vida segue e a fila anda.

Mesmo as mais plastificadas tinham uma vivacidade juvenil reconfortante, o que me fez lembrar como as mulheres são mais sábias e sabem viver muito melhor.

Os homens estavam mais pesados, carecas, desleixados, exalando rancor, alguns arcados nos ombros como se tivessem sustentando pesos imaginários na consciência.

Claro, havia aqueles que nunca deixam de ser príncipes, pois a existência lhes reservou uma leveza na alma que os mantêm como seres humanos especiais.

Mas o que me chamou atenção foram os olhares ressentidos e os cumprimentos formais evasivos. De imediato, um espírito de porco me chamou a um canto e comentou: “com quantos aqui você já brigou pelo facebook?”

Dei uma visada geral e não encontrei ninguém, ou melhor, ninguém ali vinha à minha memória, mesmo porque, como uma vez disse o Eça, o tempo é escultor de ruínas.

Em seguida, fui obrigado a chamar a atenção de meu interlocutor de que as discussões em redes sociais são uma maneira de relaxamento, algo que não deve ser levado a sério, pois é apenas uma diversão moderna e que, nesse campo, o insulto deve ser encarado como uma homenagem que a aspereza das palavras faz em nome do amor e da solidariedade fraterna entre pessoas que pensam diferente.

Meu argumento não convenceu.

Depois disso, passei a ficar mais atento quando eventualmente participo de “acontecimentos” de nossa melhor sociedade. Os lacaios da República de Maracaju não me perdoam (defendem a tese de que cuspi no prato em que comi).

 
A direita acha que sou maluco. A esquerda tem “certeza” de que flerto com o fascismo. Os liberais de fachada acreditam que sou estatizante. Os politicamente corretos me acusam de misoginia. Enfim: os distintos membros de nossa comunidade opinativa me enquadram pela lente de seus horrores e temores.

(Logo me vem à mente o pensamento irônico: todos são inocentes; o inferno são os outros.)

E assim a coisa vai como naquele navio de Fellini. Com isso, perdi amigos e amigas, sou detratado pelas costas por gente que nunca conversou comigo, sou alvo de fake news na rede e, invariavelmente, sou xingado por pessoas mais exaltadas que não conseguem entender uma ironia, uma galhofa ou mesmo uma palavra carinhosa (alguns acham que é sarcasmo).

Outro dia li uma frase de um filósofo alemão em que ele dizia que vivemos numa época em que muitas pessoas cultas acham que a verdade não merece nenhum respeito especial.

Posso, por exemplo, tentar explicar para os meus desafetos que aquele cara que escreve é apenas um personagem. Ou melhor dizendo: eu sou outro que você não conhece. Mas de que adiantaria? Eu continuaria chegando aos velórios e às festinhas recebendo os mesmos olhares incômodos de sempre.

Por isso, procuro ser sempre solene e silencioso quando um amigo morre. O morto será sempre o único que, naquele momento, me ama. Olho para seu rosto, seguro suas mãos, deixando com ele minha amizade e afeto para sempre...