O escritor sul-africano JM Coetzee, Nobel de Literatura em 2003, certa vez escreveu um livro que nos apresentava o seguinte dilema: um grupo de crianças que produz um filme caseiro com cenas eróticas pode ser acusado de estar difundindo a pedofilia?
A questão é complexa. Muitos poderão perguntar em qual contexto Coetzee colocou esse problema meio esquisito.
Na sua história (pelo que me lembro) ele comenta (é uma mera passagem do romance) a iniciativa surge como se fosse um trabalho escolar. Meninos e meninas púberes elaboram um roteiro, dirigem e atuam numa espécie de filme pornô-infantil.
O que se diria no momento em que eles apresentassem esse “trabalho” no fim do ano escolar?
O que você, leitor amigo, diria?
Aqueles que hoje se esfalfam em apontar o dedo para obras de arte criadas por adultos enxergando intenções pedófilas em corpos nus, paus gigantescos, pernas abertas, bundas magníficas deviam perguntar às crianças o que elas estão percebendo nesses objetos.
Da mesma forma, a pergunta cabe aos adultos.
Certamente, elas - crianças e adultos - saberão que existe uma enorme diferença entre o mundo real e o mundo mental. Mesmo que se diga que crianças vivem intensamente suas fantasias, acreditando em fadas e duendes, ainda me apego à opinião de que perversidades devem ser evitadas de serem mostradas, pois isso poderia causar distúrbios de valores civilizatórios.
Só que a vida real não concorda comigo.
Imaginem o que pode acontecer a uma família vivendo num quarto e sala, num barraco miserável, submersa em sujeira, ignorância e servidão?
Há como existir pureza nesse ambiente?
Talvez a miséria seja a pior forma de promiscuidade.Mas isso é outro assunto.
Onde, então, entra a exposição de arte do MARCO que assombrou deputados e evangelizadores da moral alheia por causa de uma pintura esteticamente duvidosa semanas atrás? Onde entramos nós, meros expectadores da fúria e da histeria coletiva? Como vamos julgar reações que fogem aos padrões de que a arte ocupa um lugar sagrado da sensibilidade e esclarecimento da alma humana?
Essas vozes – vejo aqui e ali - se levantam em nome da proteção das nossas criancinhas. Essa é a tese conservadora. Mas ela é apenas mais uma entre inúmeras outras. A verdade verdadeira pode estar em muitos lugares.
Por isso, devem-se refrear os primeiros impulsos e pensar. Pensar.Pensar.
Digamos que esse “objeto” artístico pecaminoso e demoníaco seja um corpo nu de uma pessoa fazendo uma performance dentro de um museu, no qual permite-se que seja tocado.
Bem, é impossível ficar indiferente a essa camada de problema porque a situação coloca em si mesma tantas questões contraditórias que não há como encontrar um consenso que satisfaça a todos.
Vem a pergunta: você levaria seu neto de 6 anos de idade para assistir a essa “obra artística”?
Depende. Penso que o razoável que, em sendo assim, talvez seja melhor que haja uma mediação adulta, mas é impossível afirmar categoricamente que isso possa causar “traumas” irreversíveis nas mentes infantis.
Em tese, não faria nada. Na prática, pensaria, mediaria prós e contras, discutiria com meus advogados interiores. Tomaria uma decisão madura e esclarecida.
Penso: meninas brincam de bonecas. Meninos brincam de pistola. Simbolicamente, podem ser objetos sexualizados.
Crianças vão à igreja e são submetidas ao horror de um corpo semi-nu, sangrando e pregado na cruz (leiam Joyce sobre como esse fato marcou sua infância e juventude).
Elas (as crianças) podem ver galos e galinhas nos quintais fazendo pintinhos, vacas e bois fazendo bezerrinhos e assim por diante. Ninguém condena.
Não há como separar o sexo da vida. Por essa razão imagino que a pedofilia não seja crime tipificado no código penal. Apenas o ato violento, agressivo e sórdido é alcançado pela lei e recebe severa condenação da Justiça e da sociedade.
Se tal agressão for perpetrada contra um adulto é condenável. Se for contra uma criança é inominável.
Mesmo assim, uma obra de arte que provoque um debate sobre o assunto deve ser exposta porque a humanidade nunca foi um campo fértil para cordeirinhos inocentes.
A tentativa de naturalizar a pedofilia pode ser um esforço condenável. Não é aceitável que pessoas doentes consigam chegar a esse ponto, mas transferir para a arte a responsabilidade por isso é no mínimo delírio de tarados enrustidos..
Mesmo assim, o fenômeno social que vem levando doentes de outra espécie dar início a uma cruzada pela moral e bons costumes, pedindo a queima dos hereges, me interessa. Quero entender a cabeça desses seres humanos demasiadamente humanos.
Nunca imaginei que tantos malucos estivessem se guardando dentro do armário embutido esperando a hora exata para dar um salto rumo à escuridão de nossa cultura.
Pode ser preocupantes, mas é fascinante!