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Dante Filho: No show de Caetano & Bethânia, ficou claro que a esquerda não está preparada para conversar com os evangélicos

Show de Caetano & Bethânia, em Brasília, 
lotou o estádio Mané Garrincha

No último dia 09, no show que Caetano Veloso e Maria Bethânia apresentaram no Estádio Mané Garrincha, em Brasília, houve um momento de anticlímax num espetáculo que tinha tudo para ser perfeito. 

Foi quando Caetano fez uma breve intervenção política para justificar a música que ia apresentar em seguida, "Deus Cuida de Mim", do pastor Kleber Lucas, chamando a atenção para o fenômeno social em torno do crescimento da população evangélica, num aceno claro da importância de dialogar com estes segmentos religiosos, ecoaram algumas vaiais e o público esfriou, num sinal claro de desaprovação.

Caetano cantou a música e foi pouco aplaudido no final. O público era volumoso. O Estádio estava praticamente lotado. Todos sabiam que ali estava a turma da chamada frente ampla que elegeu Lula ( inclusive Janja e a classe cultural global estava assistindo tudo nos camarotes) e muitos viram no gesto de Caetano uma tentativa de fomentar polêmica e discussão. Não aconteceu nada. 


O PT tem pregado à sua militância sobre a importância de superar as diferenças com os evangélicos, num esforço de compreender essa corrente conservadora que atualmente fecha eleitoralmente com a direita e extrema-direita. Mas se essa base progressista que estava presente ao Show for uma espécie de média de tendência de opinião pública ficou claro que essa tarefa será muito complicada.

Louve-se a clareza de Caetano quanto a esse aspecto de nossa realidade política, mas as gentes do PT vivem ainda uma estreiteza mental que não permite que, em sua maioria, aceitar a diversidade democrática é uma tarefa de duas mãos.

A arrogância da esquerda não aceita qualquer conversa que signifique redenção às pautas reacionárias, da mesma forma que os evangélicos continuarão desconfiados das pautas identitárias.

Por mais que figuras proeminentes do progressismo brasileiro percebam que não se ganhará eleição sem atrair parcelas expressivas de setores que querem uma sociedade menos liberal nos costumes, mas mais liberalizante e privatista na economia, os eleitores "cabecinhas de vento" não conseguem enxergar que eles estão fazendo tudo que a direita, seus extremos e o centro sonham: enxugando gelo com propostas e ideias fora de lugar.

A eleição de Trump, neste aspecto, é mais do que um sinal neste sentido. 

Quem viu Caetano e Bethânia, em Brasília, no centro político do País, e tem um mínimo senso crítico, teve a oportunidade de ver além das sombras que atualmente nos cobrem. 


PS- Lado a lado, a presença de Caetano Veloso ficou quase apagada no show de Brasília. Ninguém discorda que o baiano é um grande criador e cantor. Sua relevância para a cultura internacional é indiscutível. Mas a presença cênica de Bethânia tem uma potência que ultrapassa seu canto poderoso, fazendo Caetano parecer um coadjuvante ao longo das duas horas de apresentação. É difícil não ir às lágrimas quando ela traz no peito as canções de Gonzaguinha, por exemplo. Sua figura pequena, meio mirrada, ganha uma dimensão mágica, fazendo com que qualquer gesto adquira sentido apoteótico, quase fora do comum. Se eu fosse místico, passaria a acreditar que Bethânia tem um grande acordo com os elementos sutis que habitam o céu e a terra.