Anthony Hopkins: os personagens
emblemáticos de nosso tempo
Conheci o ator Anthony Hopkins ainda na adolescência. Era 1991, e o encontro se deu numa sala de cinema do shopping Campo Grande, onde assisti a "O Silêncio dos Inocentes", o melhor filme do diretor Jonathan Demme.Não vale a pena relembrar a história pesada do filme, que qualquer cinquentão conhece. Fixo minha memória na cena em que o doutor Hannibal Lecter aparece, comendo fígados humanos acompanhado de um copo de vinho.
Nos intervalos dessa selvageria, o protagonista ainda gostava de pintar Florença (de memória) e escutar Bach, especialmente as ‘Variações Goldberg’.
Foi preciso estomago, mas aquele encontro me ensinou bastante sobre a natureza do mal, especialmente quando persiste a velha crença racionalista de que o mal nasce da ignorância.
Se os homens conhecerem a verdade, seguirão pelo caminho do bem. Lampejos dessa atitude persistem até hoje: os males que nos afligem serão facilmente redimidos pela educação ou pela cultura.
Doce ilusão desmentida pela escritora Hannah Arendt logo após a Segunda Guerra. Hannibal Lecter implodia esse otimismo: o mal era simplesmente uma forma de estar no mundo. Não era produto da ignorância, da pobreza ou do ressentimento. Ali, médico e monstro conviviam na mesma pessoa, reencenando o mistério do mal para os nossos tempos desiludidos.
E a maldade dele era elegante, de uma impassibilidade estoica; não é por acaso que, entre suas leituras prediletas, estão os "Pensamentos" de Marco Aurélio.
Até então, o cinema era pródigo em vilões fisicamente brutais e emocionalmente descontrolados. Aliás, no mesmo ano de "O Silêncio dos Inocentes", Martin Scorsese apresentava Max Cady, interpretado por Robert De Niro em "Cabo do Medo", um desses seres diabólicos e perturbados.
Já o doutor Lecter, na sua feroz imobilidade e absoluto autocontrole, jogava em outro campeonato. Não era desumano, como Cady; era inumano, como uma máquina. Não admira que, em entrevistas posteriores, Anthony Hopkins tenha confessado que a inspiração para Lecter foi o computador Hal 9000, de "2001: Uma Odisseia no Espaço".
Passaram-se 30 anos desde o filme – e desde a minha adolescência. Mas é com o mesmo sentimento de fascinação que encontro Hopkins, desta vez em "Meu Pai", um filme que mexeu comigo, pois meu próprio pai também foi vítima de Alzheimer.
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Assistir àquela história trouxe à tona memórias dos momentos mais difíceis da minha vida, de um mundo que se desintegrava. Nos olhos de Hopkins, vejo a luta contra a desagregação – rostos familiares que ele não reconhece; rotinas diárias que se tornam pesadelos surreais; conversas banais que perdem seu sentido, como tantas vezes aconteceu com meu pai.
E, nesse labirinto, Anthony tenta agarrar-se a um princípio de ordem, como um náufrago em plena tempestade, refletindo a fragilidade que também experimentei em minha própria casa.
Se Hannibal Lecter não conhecia o mais leve sentimento, Anthony é assoberbado por seus próprios sentimentos – temor, raiva, suspeição e ignorância – muitas vezes ao mesmo tempo, como se fosse uma criança aprisionada no corpo de um velho.
Se Hannibal era inviolável, Anthony é de uma vulnerabilidade transbordante, quase embaraçosa. É nesse contraste entre as duas criações de Hopkins que podemos medir a versatilidade, a inteligência e o gênio desse ator.
A arte de Anthony Hopkins transcende a gêneros, estilos e personagens. Com certeza, é uma das mais radicais explorações do que significa ser humano – das trevas de Hannibal à fragilidade tocante de Anthony. É uma sorte sermos seus contemporâneos.
Alexsandro Nogueira, jornalista, escritor e músico. Colaborador do Blog