Em 2020 lancei o livro de poemas "Cabeça de Chapéu". Como vivíamos o tempo da pandemia não fiz um lançamento oficial. Enviei exemplares para amigos e inimigos. Vendi meia dúzia aqui e ali. Como sou contra a destinação de verbas públicas para qualquer atividade artística o livro foi custeado com meus recursos particulares. Claro, "Cabeça" foi um retumbante fracasso. Poucos comentaram. A maioria desprezou. Creio que ninguém entendeu nada. Houve quem elogiasse, mas sou daqueles que recebe qualquer referência positiva com constrangimento.
Apenas um amigo de Campo Grande, professor, poeta, artista, brindou meu trabalho como a "a obra mais importante dos últimos dez anos de Mato Grosso do Sul. Pena que ninguém jamais saberá disso porque o livro chega num momento em que a literatura acaba de ser morta e enterrada e já começa a feder".
Não foi animador.
Hoje, depois de quase cinco de anos de silêncio decidi publicar o prefácio do livro com o propósito de deixar registrado um período de minha vida, já que estou preparando novo trabalho a ser lançado este ano ou, talvez, no próximo.
Sei de antemão que não haverá foguetório. Tenho muitos detratores no meio cultural que possam dar margem (mínima) para reconhecer o tipo de poema que publico. Não ligo. O importante é continuar e manter a esperança de que novos tempos virão e a atual idade das trevas perecerá.
Anteâmbulo deambulante
"Eu: sou o que sou. Espremo minha existência na experiência do outro que fui há um segundo. Ando e me transformo. Escrevo. Reescrevo. Rabisco. Risco. Desenho. Não sou poeta. Nunca fui. Tentei. Não deu certo. Aos 23 escrevi um livreto com versos bobinhos. Ruim. Não prestava. Joguei no lixo. Aos 45 escrevi outro. Péssimo. Queimei. Fiz mais dois. Horrorosos. Coloquei-os numa pasta que se perdeu em algum lugar. Esqueci. A poesia é trêfega. Ela maltrata. Às vezes, é confessional, terapêutica. Há também a que empina o nariz e espalha lições de moral. Sem contar a que tem versinhos que preferem inventar um lirismo para ensinar humanos a serem melhores do que árvores. Todo poema flerta com a nossa pieguice imanente. Cartas de amor são ridículas, lembram?A poesia é a carta de amor que idiotas eternos escrevem pra si mesmos. Até aquele poema que transcende e aspira a mais pura filosofia padece de um pedantismo irritante, um tremelique indecente, um andar que flui na direção do Olimpo. Ah, a metafísica dos versos, seu exercício pungente de relação com o etéreo. Putz, quanta perda de tempo...Outro dia li não sei onde que o poeta verdadeiro é um ser improvável. Ele anda, come, fala e cospe. Faz outras coisas. De vez em quando escreve pensando que é deus. Ele fica lá esculpindo suas frases, seus versinhos, escolhendo as melhores palavras, imitando passos de dança, para depois sofrer com a indiferença, a ausência da boa (e má) crítica, esperando migalhas de atenção por fazer algo que tem profundas relações com o inútil e com coisa nenhuma. Por isso, desisti do grande poema, ou melhor, do poema limpo, dos versos educados. Na verdade, desisti de escrever um livro de poemas. Cheguei à triste conclusão que sou incapaz, destituído de talento, infame para os sentimentos e sem manejo para lidar com a vida nem com as viagens da mente. Sou duro, estreito e estúpido. Foi uma conclusão pessoal sofrida. Foi um momento triste e difícil. Um dia – finalmente - li num livreto de Borges de que não há diferença entre música e poesia. Ambas lidam com o mavioso timbre do tempo no espaço opaco de nossa loucura. Prestei atenção naquele troço. Era uma chave. Era um milagre. Era um sinal. Fiquei uma semana sem conseguir dormir. Só ouvindo música. Muita música. Até que compreendi o que era o silêncio. Até que finalmente compreendi o que era o poema. O poema é a metáfora dos silêncios. Foi daí que passei a usar esse chapéu. Ele é invisível. Ele retém no meu cérebro as palavras fugidias que tentam escapar pela minha boca. No fim, deixei de ser gente e passei a ser esse chapéu. Minha cabeça passou a se confundir com esse adereço volumoso que me transformou num poeta, num poetastro, num poetado, num poetinha... Essa é a história. A longa história. Foi então que, aos 60 anos, fiz esse livro. Resisto em publicá-lo. Ensaiei o lixo e o fogo. Tentação. Não consegui. No final, achei melhor, sim, publicá-lo, do que morrer e deixar para outro inseto rastejante fazê-lo. Assim é a vida. Foda-se."