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A marca: uma análise sobre a tatuagem na individualidade contemporânea

 



Yara Penteado* -


Quando nascemos, nos é atribuído um nome. É a nossa primeira identidade. Um registro social de nossa existência, feito de acordo com as normas coletivas modeladas por cada sociedade ou grupo social, que servem para regular a vida de cada indivíduo desde seu nascimento.

Há uma série de equipamentos sociais que forma um verdadeiro sistema que, ao longo da vida, vai colocando rótulos identificadores e distinguidores de papéis, comportamentos esperados, funções correspondentes a cada um, inserido em determinada classe, grupo, estamento ou organização.

É um sistema de referências que se amplia a cada etapa. Assim, vamos completando o ciclo: a Certidão de Nascimento, o RG, o CPF, o Título Eleitoral, etc., e acumulando documentos que atestam perante a sociedade que somos um diferente do outro. Dessa forma, o homem vai construindo sua identidade social para si, como autorreferência, e para os outros, em seu entorno no mundo.

Essa construção da individualidade é muito complexa e difícil. O homem tem que aprender todos os sistemas criados a sua disposição para se comunicar com o mundo circundante e se relacionar com os outros indivíduos. O mais poderoso desses sistemas é o da comunicação entre os homens, seja de forma verbal, escrita, representativa, artística, seja como for.

Assim, foi necessário criar e ir aperfeiçoando esses códigos, por meio de sistemas simbólicos, conjuntos linguísticos ou interpretativos, as mais variadas formas que a genialidade humana às vezes atinge. Isso o torna membro do seu grupo, com as consequências subjacentes a cada experiência.

Daí nascem as contradições naturais entre o indivíduo e a sociedade, impostas em cada grupamento social e que modelam o perfil de cada ator social.

Auxiliadas pelo conjunto de sistemas, vão emergindo situações reguladoras de comportamentos, ideações apropriadas do coletivo e intersubjetividades, produto da troca de informações entre as pessoas, fruto de relacionamentos especiais afetivos ou não, tudo imposto pelo mundo que o cerca e a sociedade que o regula.

Há um imenso conjunto de arquétipos, providos pelo social e pelas agências controladoras do seu comportamento, que determina o surgimento de sistemas de controle, com normas, leis e códigos e agentes especiais.

Aí reside a questão crucial: a individualidade, o eu referente, face a esse verdadeiro domínio que a sociedade planeja impor e impõe por meio da educação, do exemplo de costumes, enfim, do exercício diário das mais variadas experiências sociais a que se submete. Um sistema de referências, que constrói redes para sobreviver nessa imensa e avassaladora onda que tenta submergi-lo, se não conseguir domá-lo.

O conflito se instala dentro e fora dele. As contradições surgem a cada instante ao tentar construir seus próprios modelos, suas próprias referências. Nessa busca, recorre a variados exemplos, fornecidos e já moldados pelo social e propagados pela mídia, essa grande arma de controle disseminadora de informações de todo o conjunto disponível de possibilidades de comportamento.

Fora isso, também tem que sobreviver aos seus próprios conflitos interiores, ao se deparar com os sistemas existentes, construídos pela história, com a finalidade de dominar e manipular as informações, que também fazem parte do grande repertório de atividades educadoras e civilizadoras do indivíduo.

Mas isso foge aos limites deste tema. Ao questionar a sociedade, questiona-se a si mesmo. Tenta se insurgir na busca de modelos alternativos de comportamento que, mais uma vez, estão disponíveis, atualizando-se continuamente, na busca eterna da individualidade, do novo, da diferença.

Um desses modelos é a tentativa de marcar sua personalidade por meio de marcas físicas, visíveis, corpóreas, estigmáticas.

Para realizá-las, passa por sucessivos processos quase cirúrgicos de ativar no próprio corpo essas tatuagens, como são chamadas, evocando a forma como são feitas, gravadas, impressas. É processo semelhante ao do boi, com a diferença de ser fora da vontade dele e como símbolo-ícone identificador de propriedade.

Os mais variados modelos são usados: serpentes, caveiras, corações, sereias,
tigres, dragões, muitas vezes, coloridos. Nesse momento, torna-se um “indivíduo individual”, se assim podemos dizer, na autossatisfação de se achar único e diferente dos demais entes sociais.

Essas marcas impressas no corpo o encaminham para um outro grupo que, como ele, também buscou esse tipo de identificação física e visível.

Novamente, o padrão passa a ser dominante, porque está na moda e todos querem dele participar, disseminado e recorrente, particularmente nas gerações mais jovens.

Como é com a moda, referência de modernidade, arrojo e identificação. Alguns, inclusive, estão ultrapassando os limites convencionais, chegando a um bordado inteiro, até com cabeça raspada e cheia de tatuagens.

Isso nos leva a algumas reflexões, com o maior respeito às escolhas, individuais ou coletivas.

Nossa abordagem ao tema aqui proposto é meramente quanto aos aspectos comportamentais e aos usos e costumes na contemporaneidade. A grande reflexão, que logo se destaca para se perguntar, é o resto da vida, o enfrentamento do tempo que também tem suas próprias marcas.

Vale dizer novamente que nada temos contra as escolhas das pessoas, independentes das nossas. Cada um pretende ser senhor do próprio destino. Que assim seja e que a história permita.



*Yara Penteado é mestre em antropologia social pela UNB, pesquisadora e formada em Letras UFMT.

Artigo publicado originalmente no jornal Correio do Estado em 07/03/2024