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O golpe que foi sem nunca ter sido

                                     Aproveitem porque Alexandre de Moraes ainda está bem humorado - 

Primeiro, um esclarecimento que, infelizmente, se faz necessário nestes tempos em que turbas alucinadas arrogaram para si o direito de ter opinião abalizada sobre tudo e todos. E o mais grave: querem ser levadas a sério 

O texto abaixo, assim, é uma narrativa sobre fatos a que me dou o direito de escrever por dever de ofício. Posso estar certo ou errado. O tempo dirá. Mais: aviso aos navegantes que não tenho nenhum interesse político que me liguem ao bolsonarismo ou ao lulismo. Não sou isentão. A minha preocupação é a mesma de todo cidadão que não está gostando da proliferação obliterada da polarização e de como o autoritarismo se fortalece na medida que homens e mulheres brigam em torno do bezerro de ouro do momento: você é de esquerda ou de direita? É progressista ou reacionário?.É machista ou feminista? É todos ou todes? É racista ou antirracista? Prefere os judeus ou os palestinos? Gosta dos terráqueos ou dos extraterrestres? E assim vamos...

Quem tem por hábito ler o filósofo italiano Giorgio Agamben sabe que estamos há muito vivendo um Estado de Exceção. A cada dia extremistas de direita e esquerda avançam e o centro político assobia pensando que está tudo bem. Trata-se de cegueira voluntária. 

Vou tentar uma imagem: sou como aquela coruja no toco tentando observar o cenário. Se o que se passa à minha frente desmerece os personagens a culpa não é minha. 

Aviso ainda os leitores que conseguirem chegar até o final deste artigo (ninguém mais gosta de ler) que desde 8 de janeiro, a data que uns chamam de "Dia da Infâmia" e outros "Dia dos Patriotas", fomos toldados pela incerteza e pelo temor. O mundo ficou esquisito e estamos tentando compreender os acontecimentos com independência e clareza de espírito. Mas não está fácil. 

Claro, os mais exaltados gritam desde janeiro a palavra "Golpe !" com o peito estufado; outros, chamados "negacionistas do mundo plano", viram apenas baderneiros malucos tentando colocar abaixo a Praça dos Poderes, em Brasília, tal qual Nero um dia tentou queimar Roma em fogo ardente.

Há também aqueles que enxergam dedo do PT no quebra-quebra, mas a realidade desmente tal versão porque aí teríamos que concordar que o Brasil transformou-se num hospício e algum espírito de porco jogou a chave fora. 

Confesso que fiquei meio atônito no dia 8, mas não apressei em tirar conclusões imediatas. Muitos me perguntaram assim": "houve um golpe? A democracia correu riscos? O Estado Democrático de Direito ficou na beira do abismo? Juro que não sabia como responder e só agora vejo um pouco de luz, principal depois da ultima operação da PF.

Sempre considerei esperar pela evolução das investigações, pela decantação dos borburinhos palacianos, pela articulação de bastidores dos envolvidos e pelo pinga-pinga da imprensa conforme o mundo girava. 

Mesmo assim, no dia fatídico, considerei que aqueles acontecimentos teriam constituído uma verdadeira tentativa de golpe (só recentemente a imprensa inseriu a palavra "tentativa", substituindo pelos iniciais "atos golpistas"), caso os acontecimentos não tivessem ocorrido num domingo, sem expediente, com a grande maioria da cúpula dos poderes viajando ou descansando em casa.

Ocasionalmente conversei com pessoas (jovens, na maioria) que participaram do ato em Brasília, mas eles juram que fizeram, tudo aquilo motivados por raiva coletiva, num chamado efeito rebanho, sem motivações golpistas, mesmo porque não havia organização nem vontade de sedição política-ideológica.

Bolsonaro tem adotado esse argumento defensivo, afirmando que o momento escolhido para a deflagração do ato foi inusitado, uma surpresa protagonizado por arruaceiros. Realmente, há essa questão, mas há tantas outras, com gravações de reuniões de evidente cunho golpistas, movimentações atabalhoadas de bastidores, ameaças de "virar a mesa", delações de testemunhas oculares da história, que acaba tornado todos os desdobramentos fatos na história mais confusa de todos os tempos.

Um dado concreto é indiscutível: havia uma tremenda vontade golpista, transpirada todos os dias por Bolsonaro e seu núcleo duro. Mas, francamente, um golpe no Brasil naquela altura dos acontecimentos seria, na mais branda das hipóteses, um sonho maluco de algumas noites de verões abrasadores.

É preciso dizer que um golpe de Estado pra valer (analisando os precedentes históricos), com toda aquela balbúrdia, teria que acontecer em dia de expediente normal, com os integrantes da máquina pública dentro do Palácio, com os revoltosos civis e militares com armas em punho, com reféns, tiros, mortes e prisões, enfim, uma quartelada clássica como podemos verificar na longa história dos Coup d'état, com suas variações e tonalidades.

Mas o Brasil é um País diferente. Aqui o que vale é a carnavalização de tudo que devia ser demonstração de planejamento e articulação bem engendrada, levando-se a sério os propósitos da ação, tudo levado a cabo com grande profissionalismo. Enfim, no País do Carnaval tudo é palhaçada. 

O que se sabe hoje - conforme a Operação Tempos Veritatis - reduz os "atos golpistas" a uma grande galhofa, coisa de gente especialmente incompetente. O mais esperto ali quebrava ovo na testa. Muitos jornalistas têm comentado o assunto sobre a patetada a que assistimos, que fica até difícil encarar os acontecimentos com a solenidade necessária para que a posteridade analise os fatos com alguma precisão, clareza e rigor científico. 

De meu lado, nunca vi tanta burrice política num mesmo ato, numa soma de comédia com tragédia. E o mais incrível: ninguém morreu. De fato, Bolsonaro nem devia ser preso; talvez devesse passar uma temporada num hospital psiquiátrico, medicado e controlado. 

O Governo Lula - pego de surpresa (?) - também agiu com estultice desmedida. Quem acompanhar o passo a passo daquele do 8 de janeiro verá o despreparo, a improvisação, o medo da soldadesca de trair suas paixões (pela extrema direita) e abraçar a causa da democracia. 

Foi uma zona épica, onde a concentração de tantos erros acabou dando certo para quem percebeu logo de cara que estavam diante de uma de celerados que não tinham lá muita clareza do que estavam fazendo. 

Fiquei pensando por um tempo: se Bolsonaro tivesse uma pequena fração da genialidade de um Trotski ele teria conseguido ser vitorioso no golpe, tal como ocorreu em outubro de 1917 na Rússia. O golpe de Estado que derrubou o absolutismo Russo - com toda a barbárie registrada - foi longamente planejado, com grupos vigiando cada esquina de Moscou durante meses, acompanhando a rotina do Palácio, tudo no mais absoluto silêncio, sem que nenhuma informação vazasse, numa engenharia tão precisa que quando tudo estourou não houve possibilidade de reação, as ferrovias estavam sob controle, o fornecimento de energia elétrica e telefonia estava nas mãos dos golpistas, enfim, não havia um setor do governo que poderia reagir sem danos humanos catastróficos. 

O serviço foi arrematado com Lenin mandando assassinar toda a família real, consagrando assim uma nova estrutura de poder. Mais tarde, depois da morte de Lenin, Trotski tentou um golpe nos mesmos moldes contra Stálin, mas fracassou porque esse sabia das coisas e era muito esperto. Mas isso é outra história. 

O Bolsonarismo é um mero picadeiro de circo. Mesmo assim digamos que a intentona de 8 de janeiro tivesse dado certo. No primeiro momento, os "baderneiros" ocupariam as sedes dos três poderes, armados até os dentes, avisando que dali não sairiam, ameaçando que lutariam "até o último homem". Em poucos dias Bolsonaro voltaria ao poder mandando bala em medidas de exceção. Aplicaria todo receituário autoritário disponível e os patriotas seriam  felizes para sempre. (Sorridos irônicos, por  favor).

Imaginem a mídia internacional com os olhos voltados para o centro de Brasília. Haveriam diplomatas e representantes da ONU agindo para contornar a crise e os Estados Unidos e União Européia tentariam tirar Brasil do mapa mundi. Bolsonaro não resistiria 2 meses. 

É possível que os golpistas  formariam uma Comissão de Crise e emitiriam decretos e medidas de exceção, mandando prender juízes da suprema corte, parlamentares de oposição, soldados e militares legalistas. Mas certamente morreriam na praia. 

Conforme a opinião pública e a imprensa começassem a reclamar aos poucos os novos mandantes evocariam a censura, prenderiam os opositores e baixariam medidas com toques de recolher etc. Imediatamente, a comunidade internacional poderia apertar o torniquete. O País ficaria no limbo. Não seria agradável viver num lugar assim. 

Seríamos obrigados a receber do guarda da esquina, em vez de multas de trânsito, tabefes na cara. Enfim, aos poucos o sistema autoritário seria erigido até que houvesse o apagão total. A imaginação narrar o que poderia acontecer certamente faria alegria dos romancistas.

Tenho visto nas redes jornalistas comentarem a incompetência da turma de Bolsonaro em perpetrar o golpe. O que eles (o bolsonarismo nos seus termos) tentaram, na verdade, não foi um golpe, foi um ato circense, com figuras até então consideradas como sendo a elite das forças militares fazendo papel de palhaços. 

Reparem na famosa reunião que fora gravada, mas que ninguém sabia que estava sendo gravada (só rindo) o personagem de Paulo Guedes, em silêncio, comendo um sanduíche. Nem na mais inimaginável ópera bufa uma cena dessa seria concebida, mas está lá. 

Gente esperta sabe que para derrubar a democracia tem que ser aos poucos, corroendo por dentro, como vem fazendo o Ministro Alexandre de Moraes (o verdadeiro líder do golpe em curso, com o beneplácito de Lula e omissão do Poder Judiciário), conduzindo um inquérito perpétuo (indicado, vejam só!, por Dias Toffoli), mandando prender a torto e a direito, multando e tirando mídias de redes sociais do ar, apertando o empresariado e a classe política, proibindo que advogados conversem com clientes, ou seja, fazendo e acontecendo ao bel prazer, tudo por meio de decisões monocráticas, sem obedecer o texto constitucional, se lixando para reclamações e ainda sendo comemorado e glorificado por alguns como herói garantidor da nossa incipiente democracia. 

O que está acontecendo é grave. O republicanismo foi para a lata de lixo da história. A irresponsabilidade do bolsonarismo foi a maior estultice da história, ainda sob o argumento de promover uma intervenção militar sob argumento de fraude eleitoral, da ameaça da instauração do comunismo e um relicário de maluquices que só se explica pela falência total do País nos campos da educação, dos costumes, das cognições comparativas, e, o pior de tudo, com a aderência quase que total das classes esclarecidas a todo tipo de loucura ideológica, mantendo-nos num looping temporal que nos arrasta ou na direção de Lula ou de Bolsonaro - dois picaretas que representam o que existe de pior em termos de degradação moral.

O Brasil - uma autocracia populista - está comprometido politicamente pelos próximos dez anos. Sem um  grande rearranjo institucional não conseguiremos dar o passo fundamental que nos tire da pobreza e da desigualdade. 

O carnaval acabou e muita gente não prestou a mínima atenção da intensa cobertura midiática da "tentativa do golpe". Tanto que Bolsonaro está convocando sua militância para ir às ruas para impor sua narrativa. Boa coisa não virá por aí. 

E Lula - que parece cada vez mais gagá - ainda declara aos quatros ventos que a narrativa vai determinar se teremos golpe ou não. Democracia? Esquece; isso é conversa de demagogos profissionais.

O ano de 2024, com eleições municipais à vista, deverá ser conflituoso e confuso. Resistiremos? Não sei. Mas o resultado dessa mixórdia, como fator de propulsão histórica de longo prazo, não deixa muita esperança: ficaremos pior, cada vez pior. 

Oremos.