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Desembargadora Jaceguara, um recado generoso: às vezes é preciso pensar fora da caixinha da militância

Desembargadora Jaceguara Dantas escreve artigo na Folha S.Paulo -

Leio artigo da Desembargadora Jaceguara Dantas, na folha de S. Paulo (dia 14/fevereiro), sobre "Um retrato da violência contra as mulheres no Brasil", e fico impressionado com os dados ali apresentados:  os índices de violência no Brasil, principalmente sobre atos bárbaros perpetrados contra homens, mulheres (com destaque especial às mulheres negras), crianças e adolescentes nos colocam em dilemas que nos deixam sem perspectiva de construir um País decente nas próximas décadas. 

O cenário desenhado pela Desembargadora - com base em estudos realizados por renomadas instituições - assusta, causa incômodo, não somente pelo barbarismo apresentado como pelas dificuldades com os quais o poder público se vê diante de problema tão complexo. 

Existe uma famosa frase de Stálin que diz que uma única morte é uma tragédia inominável, mas milhares são apenas estatísticas. Dessa forma, o texto da desembargadora enfatiza o quadro geral, percorrendo como o Legislativo, Judiciário e o Executivo têm elaborado um importante arcabouço legal além programas inclusivos com a finalidade de garantir mais proteção aos vulneráveis, tentando evitar que essa guerra invisível permaneça no nosso cotidiano. 

Não há ser humano que aceite o assassinato, o estupro, o assédio deliberado contra cidadãos e cidadãs da forma como acontece em nosso País. De quem é a culpa? Ninguém tem uma resposta pronta e acabada para essa pergunta. No fundo, a culpa subjetiva é de todos nós. Como solucionar ou mitigar o problema? Não sabemos, mas estamos tentando, num esforço geracional coletivo, estabelecer regras que possa, com o tempo, garantir melhoria nos padrões civilizatórios. 

Contudo, é sabido que sem a superação das desigualdades sociais, da implantação de um sistema de educação de qualidade e da melhoria da percepção cognitiva da maioria, não se chegará a lugar nenhum. 

Gosto pessoalmente da desembargadora Jaceguara, somos amigos e estivemos juntos em várias lutas políticas desde a época de ditatura. Recentemente, escrevi um artigo de apoio à sua indicação para a vaga aberta no STF. Mas sinto em dizer que minha querida companheira de luta parece lidar politicamente com um problema do século XIX com a cabeça presa ao que existe fora de esquadro no século XXI . 

 Não vou aqui esmiuçar seu artigo - e seus inúmeros equívocos conceituais que estão submersos nas entrelinhas do texto - mesmo porque concordo integralmente com sua perplexidade e considero abominável tudo aquilo que se faz contra as mulheres, principalmente as pobres e negras. Vivemos, neste aspecto, uma Era de horror. 

Aproveito para acrescentar que não cheguei ontem na análise percuciente destas questões. Desde os primeiros anos de minha carreira jornalística inúmeras vezes pautei e escrevi sobre o tema. Sei que, antropologicamente falando, vivemos num mundo selvagem e as sociedades que forjamos são psicologicamente masculinas.

Não se transforma culturas arraigadas da noite para o dia. Tudo é um processo dolorida de avanços e recuos. E nesse longo caminho os mecanismos de erros e acertos determinam a toada da construção de uma sociedade menos disfuncional, mais tolerante e com maior autocontrole. Sei que as palavras fluem mais facilmente do que dureza do mundo real. É fácil fazer discurso, escrever artigos, criar leis que muitas vezes não saem do papel. 

Freud tratou de temas da relação da humanidade com seus demônios internos e externos. Não sei se a Desembargadora leu - se não, devia ler urgentemente - "O Mal-estar na Civilização", pois talvez assim ela possa ser iluminada por questões que tem nos afligido, sobretudo no tocante das relações entre homens e mulheres ao longo da história. 

Freud mostra que o preço pago pelas mulheres tem sido alto, penoso, sacrificial, embora os homens carreguem um fardo terrível dadas as condições que a natureza lhes exige na construção do que chamamos humanidade. "Nunca dominaremos completamente a natureza, e nosso organismo (aqui Freud se refere às condições biológicas de cada genitália) ele mesmo parte dessa natureza, será sempre uma construção transitória, limitada em adequação e desempenho". 

Enfim, somos feitos de sombra e luz, trazendo dentro de nós razão, discernimento moral, contenção amorosa, ao mesmo tempo maldade, vilania, vontade de poder. Por isso, quando li no artigo da Desembargadora as chamadas "diretrizes e ações de enfrentamento da violência contra as mulheres" tive a sensação de que ali era necessário introduzir "avanços institucionais" como tentativas válidas para direcionar o processo histórico no rumo de algo melhor, embora só isso não baste. 

Como escreveu o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (a coqueluche intelectual do momento) "a esfera pública é um palco (...) e o poder da soberania atua pela visibilidade teatral". Por isso, sem desmerecer as boas intenções do texto da Desembargadora em assunto tão caro a ela, chamo a atenção para o fato que, nesse caso, o ato legisferante e as ações protetivas emanadas pelo Governo (de resto, apenas gestos publicitários) podem se deslocar para aquilo que Michel Foucault tão bem analisou em seu livro 'Vigiar e Punir".

Nossa cultura cada vez mais está obcecada por controles. O sujeito livre é um acinte. Todos temos que ser militantes. Daí provém a cultura do cancelamento. Daí surgem as políticas identitárias, o punitivismo redentor, o controle paranóico de tudo e todos no qual cada olhar, cada gesto, cada palavra mal posta, torna-se um crime.

A militância da Desembargadora pode inspirar naqueles que acreditam neste mundo as chamadas ações deletérias, colidindo com o plano da realidade multivariada, que muitas vezes escapam da abrangência legal. Dou um exemplo trivial: de que adianta leis rígidas contra o tráfico de drogas quando, no mundo real, juízes e desembargadores libertam traficantes mediante paga?

Alguém tem coragem de discutir o assunto de maneira frontal e sincera diante do que está posto pelas turbas politicamente corretas?  

Outro dia (vi numa postagem de rede social) um advogado alertando sobre o extremo cuidado que homens deviam ter ao sair às ruas. Ele narrava a prisão de um jovem que foi denunciado por uma garota de que ele a estava assediando dentro de um supermercado com gestos obscenos. Por mais que o rapaz negasse a ocorrência mais a menina confirmava. 

Foi pedido as imagens das câmeras internas do estabelecimento. Foi negado. Era necessário o pedido de um juiz. A burocracia judiciária manteve o sujeito preso durante mais de uma semana naquelas condições "maravilhosas" do sistema penitenciário brasileira. As famílias de ambos os lados ficaram fraturadas. Enfim: quando as imagens foram expostas descobriu-se que a garota estava mentindo porque em nenhum momento registrou-se aproximação do denunciado e da denunciante. 

Estava ali fundado ódio e a proeminência da toxidade mundana. Num caso extremo, o "inocente" podia querer vingança. Aí poderia estar começando um"feminicídio". As tramas humanas não são bicolor, são teias entrelaçadas de amor e ódio que não tem começo nem fim.

O militante, pela sua condição, não consegue sair da bolha, seu olhar fixo nos mecanismos sociais não se alteram e nem permitem que novas interpretações tenham  chance. 

Pergunto: o que fazer? Hoje, todos sabem, magistrados e promotores de ambos sexos, principalmente jovens, mal formados, muitas vezes aprovados em concurso sem ter sido experimentado no dia a dia da advocacia, saem da faculdade com a formação do identitarismo, transformando-se em verdadeiros Torquemadas da Justiça, vendo em cada cidadão ou cidadã um assediador contumaz, um racista radical, um depredador em potencial, bastando uma denúncia por parte daquele que teve a sorte de estar do lado certo do momento histórico para pagar o preço das nossas mazelas sociais. 

Vem se tornando comum a brincadeira - inclusive entre juízes e membros mais experimentados do MP - de que nada é pior hoje em dia do que ser homem, hetero, branco e politicamente incorreto. Quem tem esse perfil vive sempre próximo ao cadafalso. Hoje muitas mulheres do sistema judiciário e policial - felizmente não são todas - incorporaram a personagem da Capitã Benson, vivida na pela da atriz Mariska Hargitai. Se a intenção é transformar a nossa sociedade em homens e mulheres vivendo sob a égide da cultura do medo, conseguiram. 

Quantos casos nossa querida policial investigou casos de mulheres que se automutilam para depois acusar o parceiro de violência, motivadas por vingança, ciúmes, contrariedades com a vida. Claro, são casos pontuais, exceções diante da tragédia social tenebrosa em que vivemos, mas é bom ressaltar que inocentes também têm direitos e não é correto puni-los em nome do bem maior. 

Acredito que a Desembargadora deva conversar e discutir mais sobre pontos de equilíbrio entre os dramas da vida privada, desavenças da vida íntima quando levadas aos tribunais, pois é disso que se trata dos números que ela apresentou. A denúncia deve evitar ser unilateral, pois existem (infelizmente) mulheres desonestas, cruéis, tanto quanto homens canalhas, criminosos e perigosos.

É possível que Desembargadora Jaceguara tenha clareza disso. Ou seja: de que essa turma que está aí querendo acender a fogueira das denúncias unilaterais no judiciário também comete veleidades, julga com parcialidade, forja processos, inventa, mente, tudo para, quem sabe, garantir que seu nome vá para o panteão da bondade, generosidade, sororidade e, mais do que tudo, do empoderamento feminino. 

Não podia ser assim. Ou melhor: tenho esperança de que, passada essa fase mais aguda, talvez lá na frente as coisas se transformem para melhor. 


Observação final: escrevo este texto como homem, hetero, cis, branco e (talvez) politicamente incorreto. Nutro o maior respeito pela Desembargadora Jaceguara. Desde menino as minhas relações com mulheres foram saudáveis, respeitáveis, abertas e sinceras. Da mesma forma com os homens pelos quais formei fortes laços de amizade  Na verdade, quem me conhece sabe: minha personalidade foi forjada por homens e mulheres que primavam pelo humanismo e pelo desinteresse material. Devo a essas pessoas quem sou. Mas estou convencido que queremos construir uma sociedade melhor, mas não estamos conseguindo. Pergunto a todos e a todas: onde estamos errando?