Pages

Memórias de antes da minha vida

 

Praça Ari Coelho, década de 60


Por Alexsandro Nogueira*

Em uma noite fria de inverno, um cobertor cai sobre o corpo de Ailton. Abraçado a uma mala gasta, ele tenta dormir, em um banco de madeira, na praça Ary Coelho, no centro de Campo Grande. Perto de completar 19 anos, aquele jovem prostrado e franzino mal consegue acreditar naquele gesto de bondade e atribui o feito a um milagre.

Há poucos metros daquela cena, ele ouve vozes sussurradas, um grupo de gente endinheirada balbuciando palavras piedosas e praticando caridade: “Agora, esse manto vai aquecê-lo. Coitadinho, tão jovem e já jogado na rua (...)”. Ailton chora encolhido, apertando os lábios, enquanto observa de rabo de olho aquelas pessoas desaparecerem em carrões pela Avenida Afonso Pena.

Há um adolescente desolado ali. De estima pisada e lágrimas correndo pelo rosto, cuja tristeza vem lhe impregnando alma, como se estivesse preso a suas dores e perdas, miséria e aflição.

Sem conseguir dormir, ele observa o entorno: um chafariz espargindo água, flores nas moitas de grama e folhas boiando nas poças sujas como pequenos barquinhos sem direção. Ao seu lado, aparece de supetão um homem embriagado, envolto em panos surrados, arrastando histórias antigas, de outros tempos, sobre o local como o antigo cemitério da cidade.

Embora parecesse com pressa, o andarilho passou alguns minutos tentando convencê-lo de que a praça era mal assombrada. Ailton tentou disfarçar o medo cortando logo o assunto. Em seguida, sacou um canivete do bolso fazendo o camarada dar meia volta e sumir de lá.

Não era questão de superstição, mas o aparecimento do intruso com aquela revelação, abriu-lhe na mente a brecha por onde entrou dilemas entre o pavor e a incerteza de ser transportado vivo em uma viagem ao mundo do sobrenatural.

A noite corre rapidamente com ventos entrecortantes e uma neblina cerrada ocultando os mistérios e as contradições daquele lugar. O relógio em pilastra da rua 14 de Julho marca 23h00, anunciando um silêncio hostil e uma atmosfera bucólica de quem está sozinho na penumbra daquela zona solitária.

O frio em Campo Grande até passava anos sem aparecer, mas em junho de 1966 o tempo foi virando de forma repentina e com pressa, anunciando um inverno rigoroso e o fim dos dias fumegantes repletos de corpos e roupas com gotas de suor.

Em períodos noturnos, aquele imenso quadrado a céu aberto se transformava em uma coisa indistinta, fétida, habitada por desamparados estirados nos bancos ou na calçada, em meio a folhagens, papéis e gravetos amontoados pelo vento empoeirado.

Lá pelas tantas, a calmaria foi novamente interrompida pelo ajuste de contas entre os gatos e os cachorros que faziam do jardim sua morada. Embretados pelos vira-latas em um trieiro, os felinos quase levaram a pior, mas recuaram a tempo, conseguindo regressar aos telhados do comércio, para onde fogem quando estão acuados.

Ailton não hesitou em sorrir, diante da cena inusitada. Por um instante, viu o passado, na placidez das raras lembranças que o acompanham desde menino, onde ele e outras crianças estimulavam a rixa entre os bichos. Tudo era dentro do mundo ingênuo da infância, com muita farra e diversão. Infelizmente, o transe só durou alguns segundos porque ele não podia fechar os olhos por muito tempo ali.

De volta à realidade daqueles dias de inverno, os olhos quebrados e a barriga roncando denunciavam a fome. O alimento ali era invariável e o estômago estava vazio. A última refeição foi há dois dias, quando o dono de uma lanchonete lhe ofereceu pão com queijo na chapa e um cheiro de fritura foi como brinde lhe impregnando a roupa.

Sem emprego e qualquer perspectiva, Ailton pensou em procurar o caminho de volta pra casa. Houve um momento de reflexão: era mais fácil retornar para as bandas do Canta Galo, ao invés de enfrentar aquela condição humilhante de morador de rua. Pelos menos, em casa teria comida, uma cama quentinha e o carinho dos parentes.

Poucos minutos depois de ensaiar seu retorno à região de Maracajú, o rapaz continha o entusiasmo, recordando as péssimas experiências com o patrão, o sinhozinho do barro vermelho e mão cruel, algoz de muitos serviçais, pelo uso da força e da garrucha afivelada na cintura.

Na fazenda, a ordem era para dar cabo ou torturar qualquer sujeito calejado, revoltado com a falta de salário e as más condições daquele inferno insalubre. A coça acontecia lá nos confins da propriedade, num canto silencioso, longe de qualquer vestígio de crime ou tentativa de socorro às vítimas. Era a morte sempre rondando.

Na madrugada de 8 de dezembro de 1964, a família de Ailton fugiu da área rural. Tudo foi muito dramático. Acomodados em uma carroceria puxada por um trator, eles saíram de madrugada para nunca mais voltar. Naquele dia, o coração de todos batia descompassado, fora do ritmo das coisas. Na estrada seca de chão batido, crianças e adolescentes sufocadas pela poeira nas narinas e pais nervosos, não sabiam ao certo o que fazer e pra onde ir.

A certa altura da viagem, cansados e famintos, resolveram cortar atalho pelas estradinhas entre as matas. Foram se embrenhando até chegar aos parentes, em Dois Irmãos do Buriti. Já Ailton, precisou seguir adiante. Tinha o serviço militar à espera, em Campo Grande.

Um ano depois do Exército, Ailton estava nas ruas, disposto a tudo para ter um futuro. Durante o correr daqueles dias, andou pelo comércio oferecendo sua mão-de-obra castiça, mas a resposta sempre era negativa, quando informava aos contratantes certa dificuldade na compreensão das letras. Por mais que se esforçasse para conseguir um trabalho, quem o visse nas lojas com a roupa remendada, o evitava como se estivesse diante de um estranho animal.

Não havia mais nada a fazer, até que um dia, na porta do Hotel Sul América, na Avenida Afonso Pena, Ailton estava passando pelo local quando percebeu um homem de meia idade estacionando um Jeep repleto de caixas de verduras. De súbito, estendeu as mãos descarregando parte das mercadorias.

Minutos depois, o senhor se apresentou como Deoclécio Pimentel, dono do estabelecimento, mas se limitou em apenas agradecê-lo pela ajuda. Mesmo encabulado, Ailton não perdeu a chance e foi direto ao assunto, implorando por um emprego. Era isso ou mais uma noite no relento.

Deoclécio e Antônia Pimentel

Por essas coisas do destino que só a fé explica, o homem balançou a cabeça consentindo, como se a decisão tivesse nascido há muito dentro dele. Antes, o avisou do período de experiência: um teste de 15 dias como auxiliar de cozinha, mas com direito a três refeições e um quartinho pequeno pra dormir.

Em seguida, o Sr. Deoclécio conduziu o novo ajudante às dependências do estabelecimento. Depois do banho, Ailton ajudou no jantar e terminou a noite limpando a cozinha. Mostrava em seu rosto sofrido, de pele queimada aquela expressão orgulhosa do trabalhador. Alguém que morreria de fome antes de se rebaixar a cometer qualquer delito.

Lá pelas tantas, ouviu do patrão o conselho para ir se deitar. Ele acatou a sugestão. Era a primeira noite no serviço, Ailton tentava dormir, mas o coração se mantinha acordado, em expectativa. E de puro alvoroço, acordou às quatro e pouco da madrugada, vestiu-se depressa e começou a lida na cozinha, preparando o café da manhã dos hóspedes.

Logo adiante, a família Pimentel percebeu em Ailton certa dificuldade com as letras e a escrita. Foi quando surgiu a ideia de ajudá-lo a desenvolver a habilidade da leitura e da escrita. Entusiasmada com a força de vontade do funcionário, a professora Leire Pimentel, filha mais velha do proprietário do hotel, passou a ensiná-lo em uma cartilha.

Em questão de semanas, ele conseguiu traçar com seus garranchos abertos e desproporcionais uma frase para sua primeira carta: Queridos familiares, estou bem, mas com saudades de todos….

PS: Às vezes nos perdemos nesses labirintos da memória, sem conseguir decifrar o que foi real ou imaginário. No caso desta história, foi narrada na sua riqueza de detalhes pelo próprio protagonista da trama: Ailton Nogueira da Silva (meu pai) - 1946/2020.


Suas lembranças permanecem vivas e intensas em meu coração.