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Quem passa pano às gafes de Lula é fascista?

 

Você que diz ter uma posição à esquerda do espectro político certamente fica incomodado com as esquisitices de Lula e suas frases que contrariam o extenso receituário daqueles que adotam a chamada agenda progressista.

Deve ser chato ter que ouvir toda a vez "ah, se fosse o Bolsonaro, o mundo acabava", numa alusão à chuvarada de críticas no tempo em que dito cujo despejava suas imprecações machistas, homofóbicas, fazendo deboche do sentimento politicamente correto, enaltecendo torturadores e quejandos.

Nenhuma pessoa de esquerda gosta quando surgem pequenos espaços abrindo brechas para que se argumente que há, concretamente, equivalências entre Lula e Bolsonaro. Há e não há. Mas do jeito que as coisas estão indo chegará uma hora que não saberemos mais quem é um e quem é o outro. Tá demais!

Lula pode ter todos os defeitos do mundo, mas é um político que respeita o campo democrático. Mesmo assim erra quando respalda ditaduras brutais. Bolsonaro, ao contrário, personifica o manifesto anticivilizatório, além de ser grotesco, e, se fosse mais inteligente, talvez conseguisse levar a bom termo um golpe de Estado no Brasil.

De fato, ele é um perigo que ronda o Brasil.

A esquerda vive um dilema existencial. Como a utopia do fim da luta de classes e a instauração da ditadura do proletariado transformou-se numa piada de salão, inclusive dentro da academia, galvanizou-se então a política do identitarismo cultural, formatando assim a luta contra o machismo, o racismo, o fortalecimento do feminismo, a bandeira ambiental, os preconceitos de todos níveis e padrões e a irrecorrível defesa da sopa de letras dos novos comportamentos sexuais.

Essa trincheira tornou-se fundamental para a sobrevivência da esquerda. Enquanto isso, a direita (que perdeu a vergonha de dizer seu verdadeiro nome) avança em várias áreas, inclusive com muita força na área dos costumes, estabelecendo um campo de luta ideológica que fundamenta os elementos polarizadores dos novos tempos.

Os intelectuais que se interessam pela fenomenologia desse processo, muitos tentando observar do alto e de longe o campo de batalha, percebe que os ideais liberais (e o capitalismo nos seus mais variados tons) está ganhando a parada porque é inegável que se tornaram hegemônicos, mesmo em países onde o Partido Comunista está no poder.

A margem de atuação da esquerda na influência das ideias é considerável, mas ao mesmo tempo é frágil. Sabemos que pessoas de esquerda gostam de mostrar-se virtuosas, amante das artes, sensíveis às desigualdades sociais, que lutam com unhas e dentes pelo humanismo, pela compreensão do outro e pelo respeito a quem tem o lugar de fala.

Sofredores do mundo, uni-vos, nós os protegeremos dos porcos fascistas e não deixaremos que o mundo regrida ao primitivismo autoritário, talvez esse seja o mote que embale os corações valentes.

Mas percebe-se que não é fácil ser coerente quando se trata de abraçar o identitarismo como modo de vida. Esta semana vimos a pisada na bola da assessora especial Marcelle Decothé que postou comentários altamente impróprios no mundo politicamente correto, seguido por Lula (já está virando lugar-comum), acusado de capacitismo, quando disse que ninguém o veria usando andador após um procedimento cirúrgico na bacia porque tinha que preservar sua imagem de homem posturado.

Teve também aquela professora que comentou para uma aluna trans de que a mesma não devia ficar "chateado" com o rumo pedagógico da escola, desencadeando o prenúncio do final dos tempos, com turbas furiosas querendo promover a dança de todas as cabeças do mundo.

Às vezes tenho medo de viver nestes tempos loucos...

Volta e meia vejo-me em debate no ambiente familiar sobre assuntos correlatos ao identitarismo. Por qualquer comentário fora do eixo que faça, uma piada transversa, uma ironia que envolva a sexualidade alheia, tudo serve de motivos para que a sensibilidade polarizada emerja e as discussões se acirrem.

Vejo que na atual etapa histórica quando se começa uma revisão de hábitos e costumes e a humanidade vai se tornando mais diversa, e as redes de comunicação tecnológicas mais aceleradas, a eletricidade emocional ganha tensões mais elevadas e os oportunistas do cancelamento se vejam como salvadores místicos da humanidade, sobretudo quando se sentem legitimamente imbuídos de levar à cabo sua missão religiosa para salvar o planeta dos macacos da direita.

Acho que tudo isso é apenas uma fase. Só que cansa.

Sinto dizer aos virtuosos que todos escorregamos aqui e ali. Um dia - como nos casos acima citados - aqueles que atiram pedras as receberão de volta. Ninguém é puro, não existem santos nem corpos imaculados.

O fascista que você aponta o dedo hoje será aquele que fará o mesmo consigo amanhã. Tudo é questão de tempo e oportunidade. Todos seremos a bola da vez. Deus está morto, lembrem-se.

Só acho que nessa hora a esquerda perde - não fico feliz com isso - porque ela esquece que a "hipocrisia é a homenagem que o vício rende à virtude", como disse o Duque La Rochefoucaud no século XVII e parece que nunca foi desmentido e nem devidamente aprendido.