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Entrevista Humberto Espíndola: O homem do boi

 


Visitei Humberto Espíndola na semana passada em sua casa, em Campo Grande, para cumprimentá-lo pela passagem de seus 80 anos, que transcorreu em abril deste ano, sem que houvesse homenagens à altura de sua obra e da sua representatividade na cultura brasileira. O Mato Grosso do Sul e o Brasil são assim mesmo, de pouco adianta reclamar.

Encontrei Humberto em total paz de espírito, trabalhando em novos quadros, e tivemos uma longa conversa, na qual apresento aqui uma breve síntese, que julgo expressar o momento especial em que o artista vive. Certamente, no futuro, o Estado - e seus governantes e autoridades - se ressentirá por não explorar com o devido louvor sua obra e suas memórias - o que, de resto, serão publicadas em livro que já está pronto e ainda não editado para lançamento.


Pergunta - Quando você está pintando um novo quadro, diante de uma tela branca, como é que tudo começa, qual é o processo de criação?

Humberto – Geralmente pego o papel e um lápis e faço um esboço do que poderá ser a tela, às vezes faço isso até num guardanapo. A maioria dos pintores usa esse tipo de procedimento. Quando comecei minha obra não fazia assim porque queria realmente botar Mato Grosso no mapa do cultural do Brasil. A metodologia do artista muda conforme o tempo em que ele vive. Já se vão quase 60 anos. Fundamos a Associação mato-grossense de Arte e a Aline Figueiredo fez aquela exposição, em 1966, aqui em Campo Grande, que foi a chegada da arte Moderna na nossa região. A nossa semana da arte Moderna foi essa exposição. Eu fui influenciado pela arte pop norte-americana e pelo muralismo mexicano. Encontrei uma base conceitual aqui que era o boi. O bar do Zé era nossa Wall Street. Tudo aqui girava em torno da pecuária. O boi habitava nossa mentalidade simbólica fundamental, todo mundo aqui era fazendeiro, a sociedade de Campo Grande era um ovo naquele tempo, a cidade tinha uns 50 a 70 mil habitantes, éramos mesmo um Fazendão o que, de certa forma, continua sendo. Ultimamente, venho fazendo uma releitura do próprio boi porque, depois de 56 anos, acho que para mim vale a pena estar na história da arte brasileira como pintor do boi. Eu sou mais preocupado hoje com as cores, com as pinceladas, às vezes utilizo os esboços usando um projetor e aí vou vendo os arranjos, faço risco a carvão, às vezes melhoro o desenho antes de fazer a projeção.... esse é processo...

Pergunta – Você já pintou uma tela, apagou e fez tudo de novo, jogando uma tinta branca por cima e começando novamente do zero?

Humberto – Não, não eu pego uma tela nova, não gosto de pentimento porque a minha pintura precisa da luz. O Ilton Silva vivia fazendo isso, tem gente que faz, eu não gosto. Antigamente se fazia, na época do renascimento...

"Eu fui influenciado pela arte pop norte-americana e pelo muralismo mexicano. Encontrei uma base conceitual aqui que era o boi. O bar do Zé era nossa Wall Street. Tudo aqui girava em torno da pecuária. O boi habitava nossa mentalidade simbólica fundamental, todo mundo aqui era fazendeiro, a sociedade de Campo Grande era um ovo naquele tempo, a cidade tinha uns 50 a 70 mil habitantes, éramos mesmo um Fazendão o que, de certa forma, continua sendo."


Pergunta - você já pintou um quadro que depois detestou?

Humberto – Isso aconteceu apenas uma vez. Quis ter o quadro de volta depois de vendê-lo. Queria queimar, eu já tentei recuperar esse quadro, mas a pessoa que adquiriu a tela gosta, eu já quis trocar, mas ela não aceitou. Acho que só tenho esse caso. De um modo geral eu gosto da minha pintura, já pintei quase quatro mil quadros.

Pergunta – No seu processo de criação qual filtragem pessoal você utiliza?

Humberto - Eu fiz meditação transcendental. Sou uma pessoa que busca muito o sentido das coisas. Se estou pintando, estou meditando, entendeu? Eu realmente eu saio de mim, eu viajo, abstraio totalmente, então uma pincelada é a minha poesia, é a minha vida, a minha emoção, está tudo ali...

Pergunta – Nas redes sociais, principalmente no Instagram, temos visto uma profusão de artistas jogando tinta na tela, mostrando uma variedade imensa de técnicas e de intervenção, estabelecendo o modismo do abstrato decorativo, até banalizando a arte, então, como você vê esse momento da impermanência das imagens por causa da invasão a que somos submetidos o tempo todo pelas redes?

Humberto - Eu me sinto um pintor do século 20. A minha formação vem do impressionismo e do expressionismo, do Van Gogh, Paul Gauguin, Picasso... aqueles grandes mestres que permanecem até hoje porque eles são realmente grandes mestres. Depois que a internet chegou passamos a ter acesso ao conjunto da obra destes grandes artistas, podemos analisar os quadros em seus detalhes e isso é positivo. Essa tecnologia trouxe uma nova influência, está sendo importante. Agora, se pintura vai ser uma coisa de terapia no futuro eu não sei...

Pergunta - Outro dia, no MOMA, instalaram uma tela de LED imensa mostrando uma obra ondulante, que se movimenta o tempo todo, não tem uma forma fixa, tem milhões de formas, muitas cores, tem música, enfim tem uma nítida função terapêutica, ou seja, ali não tem criação é pura inteligência artificial, enfim, será que é isso que dominará o espírito da arte?


"Eu espero pintar até o fim da vida, mas o corpo tem um limite. Até os 75 ainda me sentia jovem; dos 75 para 80 você percebe o envelhecimento, isso passa a ter uma progressão geométrica, sua energia continua viva, mas o seu corpo não responde e não corresponde. Aí você vai levando, tentando manter o bom humor..."

Humberto - Nessa homenagem que fizeram a mim em Bonito, com a instalação de um quadrilátero, onde as pessoa têm uma interação com minha obra, a gente já percebe uma coisa diferente. A inteligência artificial pega e trabalha minha obra de outro jeito, vira de cabeça para baixo, pega essas ondulações de mistura de cores e estabelece outro conceito. As crianças adoram, às vezes têm leituras maravilhosas que são feitas pelas crianças, eu fico espantado de ver como elas são criativas, mas não sei se o futuro das artes plásticas será a da inteligência artificial e do algoritmo...Acho que isso aí é um problema do futuro, quer dizer, eu cheguei aos 80 anos com uma concepção de pintura, não vou mudar aquilo que parece que vai permanecer. Agora, uma coisa é certa: sempre terá pintura boa, pintura ruim, tem tudo dentro de tudo, tem o bom ou o ruim, o medíocre e o médio, isso acontece em todas as áreas, na música, no teatro, no cinema, nas ciências, não tem como fugir, faz parte do processo civilizatório. O meu trabalho é uma coisa minha, pessoal, que me satisfaz, me realiza, me tranqüiliza, assenta a minha alma. Eu me sinto na história

Pergunta – Como é viver de arte no Brasil?

Humberto - Eu sobrevivi até agora, bem ou mal eu sobrevivi, porque você sabe que o mercado tem altos e baixos. Hoje estou pintando menos porque a pintura é uma coisa muito especial, estou num momento especial da vida minha. Eu sou de temporada, às vezes pinto 12 horas, produzo 17 quadros em poucos dias, depois dou um tempo, fico três meses sem pintar, porque também preciso, ouvir música, viajar, ver outras coisas. A pintura absorve muito, agora apareceu uma tendinite, resultado de anos e anos só dentro desse movimento da munheca, então a gente tem que se tratar, se cuidar... hoje, por exemplo, eu tenho um limite para trabalhar aqui, não posso passar de 3 horas sentado pintando, enfim, essas limitações físicas acontecem, eu acho super natural. Eu espero pintar até o fim da vida, mas o corpo tem um limite. Até os 75 ainda me sentia jovem; dos 75 para 80 você percebe o envelhecimento, isso passa a ter uma progressão geométrica, sua energia continua viva, mas o seu corpo não responde e não corresponde. Aí você vai levando, tentando manter o bom humor...

Humberto – Conforme passa o tempo, você se auto-avalia? Você acha que seu trabalho está melhor ou pior? Qual sua percepção?

Humberto - Sou disciplinado, sou exigente com meu trabalho, com as coisas que vou fazer. Escrevi um livro na pandemia que até agora não publiquei. É sobre as coisas que eu contava para as pessoas sobre minha infância e adolescência, não chega a ser um livro de memórias, estou chamando de digressões da memória porque a memória, na verdade, somos nós. Eu escrevi coisas que aconteceram na minha casa, a história da minha avó, sobre Dom Aquino que vinha nos visitar, então, são memórias que tem muito a ver com Campo Grande porque eu conheci a cidade quando ela era um ovo. A rua Rui Barbosa era um Areal, eu vi Getúlio Vargas fazendo campanha. Me formei em jornalismo. Quando eu vim para Campo Grande estava começando aquele movimento das artes plásticas, já era um pintor de férias que estava estudando história da arte no curso de jornalismo, na grade tinha um professor excelente de história da arte e aí eu me apaixonei. Comecei a procurar minha pintura quando eu conheci a Aline. A gente começou um movimento para levantar a arte mato-grossense, precisava de um carro- chefe, senti que eu tinha que fazer alguma coisa de projeção nacional, então busquei ser esse carro-chefe e decidi não ser escritor. Falei: vou pintar e aí comecei a me apaixonar pela pintura e entrei numa viagem profunda, fui indo e me conhecendo. Acho que arte tem muitos caminhos de crescimento espiritual, percorri todas as religiões que você possa imaginar até chegar a ser totalmente ateu como sou hoje. Essa é uma coisa que nem dá para falar muito porque choca muitas pessoas. Fui um agnóstico que encontrou o ateísmo. Hoje estou me preparando para morrer porque me preparei para vencer na vida, me preparei para ser homem, me para sair daqui na juventude e entrar na vida adulta, me preparei para fazer o meu trabalho pela sociedade e agora estou me preparando para morrer. Isso é super natural, que sorte eu tenho porque posso pensar nisso com tranquilidade...