Pages

Folha associa obra de Humberto Espíndola a agronejo Bolsonarista

 

A grande imprensa brasileira às vezes é esquisita. Na edição domingueira (dia 23/07), o Caderno Cultural (Ilustríssima) da Folha de São Paulo trouxe uma imagem belíssima: a reprodução de uma tela do nosso mais importante artista plástico, Humberto Espíndola, que faz parte da exposição permanente da Pinacoteca de São Paulo, cujo título é "Avante" (nada mais apropriado para nominar um chifre de boi).

O título cravado no alto da página, não sem propósito referia-se a "Chifre Afiado". Gênio.  

Na grande matéria interna, cujo título é "Plantando e Colhendo", de autoria do repórter Gustavo Zeitel, que destaca a Série Folha sobre o poder do agro, há ainda mais duas telas de Espindola, cada uma ocupando a metade de duas páginas, com explícita referência à bandeira brasileira, símbolo que foi apropriado pelo bolsonarismo em anos recentes.

Lendo o texto, que discorre longamente sobre a pujança do agronegócio da região centro-oeste, que hoje representa mais de 20% do PIB brasileiro, destacam-se artistas musicais, produtores de cinema e de teledramaturgia (como a telenovela Global "Terra e Paíxão"), mostrando como a imagem do campo brasileiro tem influído de maneira determinante na cultura e nas artes do País.

O foco da reportagem é o agro, prevalecendo a citação das grandes colheitadeiras, tratores, tecnologia agrícola, o luxo e a ostentação que cercam o novo homem (e mulher) do campo, que não deseja ser mais confundido com aquele fazendeirão antigo, brutalizado, latifundiário, que explora mão de obra escrava, mantendo comunidades indígenas em condição de servidão.

A música de sucesso desse novo mundo pertence à dupla Léo e Raphael, que  chama "Agro é Top", confessadamente uma peça publicitária no estilo do cancioneiro de Dom e Ravel dos anos 70.

Até aí, tudo bem, belezura, afinal onde há dinheiro as manifestações artísticas e o comportamento social andam juntos de mãos dadas, mesmo porque o agro é pop e o brega faz o gosto popular de vasta camada da população que encontrou seu modelo de expressão longe dos grandes centros, enaltecendo os valores do interior do País.

O próprio texto resume esse conceito magistralmente quando diz que "a arte inventa o nascimento de uma nação".  

O tema é vasto, amplo e profundo. Pode-se inclusive estabelecer o cruzamento de fios condutores a essas esferas culturais ao fortalecimento do conservadorismo político, neste processo de renascimento da direita no Brasil, com seu evangelismo candente e seus erres retroflexos. 

No fundo, tudo se mistura e se amalgama nessa salada geral que se tornou o ambiente da cultura nacional, onde não se sabe ao certo qual é o centro e onde fica a periferia, já que tudo está padronizado pela internet e redes sociais.

Mesmo assim, confesso minha ignorância: onde entra Humberto Espíndola nessa história? As telas em questão são antigas, o enaltecimento do verde e amarelo pertence a outro contexto, a bovinocultura não tem nenhuma proximidade com a ideia do agro atual, portanto a signagem proposta pela ilustração da Folha a uma reportagem sobre a revalorização do campo nos novos tempos brasileiros está deslocada, figurando apenas como forma e nunca como conteúdo.

Humberto devia reclamar e pedir um pouco mais de respeito. Sei que ele não vai fazer isso, mesmo porque o jornal deu-lhe uma grande oportunidade de amplificação do conhecimento de sua obra. Mas o leitor esclarecido que vive em Mato Grosso do Sul sabe perfeitamente do que estou falando, principalmente quando associa o trabalho de criação de Espíndola à nossa modernidade crítica. 

A bovinocultura é antes de tudo uma homenagem à beleza que representa nosso atraso estrutural, ironizando um ideário de progresso fomentado pela ditadura. Mas isso é outro assunto...

O jornalismo da Folha não precisa saber isso nem em se preocupar com estas questões.  Hoje em dia o texto e imagem não necessariamente precisam ser intercomunicáveis, embora fique a dúvida se aquele boi de Humberto seja o boi idealizado pelos homens do agro do Brasil de agora.

Sei que não é. Mas quem quer sabe?