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A Era da inadaptabilidade




Dante Filho


Tudo indica que a pandemia da covid-19 está em sua fase final. Mesmo assim, somos advertidos diariamente de que não podemos relaxar nas medidas preventivas. Estamos lidando com o desconhecido, sem saber qual o real efeito da vacinação em períodos estendidos. Os infectologistas alertam: enquanto as pesquisas não se tornarem conclusivas, descartando a hipótese de que vírus está apenas rearmando sua estratégia para fazer novos ataques.

Mesmo constatando redução vertiginosa de contágios e mortes, os números de óbitos ainda são trágicos. Algo na proporção da queda de 2 aviões lotados todos os dias. Se o quadro persistir não há como imaginar quando estaremos salvos ou longe do perigo. 

Até atingirmos a escala zero, há que se manter atento, mesmo que isso signifique circular mais livremente, voltando, talvez, a ter uma “vida normal”. 

A modernidade se caracteriza pelos fluxos rápidos de informação e mudanças. Vivemos um processo cultural que faz do consumismo e do individualismo o locus supremo das transformações da tecnologia e do mercado econômico. Quase toda população planetária fez um pacto tácito com esse sistema, e é sob seu comando que vivemos o chamado império do normal.

A pandemia alterou repentinamente essa lógica e interrompeu um movimento histórico que se iniciou no Iluminismo, criando utopias, gerando guerras, embora impondo uma mentalidade positivista de celebração do progresso que perdura até os dias atuais.

A pandemia, contudo, traçou uma linha rígida na nossa cartografia mental e, em pouco tempo, interrompeu os fluxos dos mais enraizados conceitos e nos jogou num vertiginoso furacão distópico.

O retorno ao mundo da normalidade, como se diz, não está acontecendo como prevíamos. A ideia seria de que, em algum momento, as autoridades sanitárias comunicassem que a peste havia sido domada, que estávamos a salvos e que podíamos voltar à vida (seja lá o que isso signifique), derrotando a pandemia. 

Mas isso não está acontecendo no prazo que esperávamos. Há medo, cautela, desconfianças, cuidados, ausências e perspectivas nebulosas. 

Em 2008, o filósofo José Arthur Giannotti publicou um grande ensaio (“Perda do Mundo”, Novos Estudos da Cebrap) alertando sobre as distopias modernas, dissecando o momento em que as sociedades humanas deu um giro, em meados do Século XIX, criando os novos paradigmas das ciências, das letras e dos costumes até atingirmos os padrões civilizatórios de ultra tecnologia que conhecemos hoje. 

“O Ocidente começou quando aprendemos a dominar o discurso friccionando significações contra significações de tal modo que o pensamento ganhasse precisão e universalidade capazes de capturar o princípio das coisas”, afirmou Giannotti, combinando as leituras de Wittgenstein, Hurssel, Hegel, Marx, Weber, Debord, Fichet, Deleuze etc, num jogo reflexivo altamente complexo para demonstrar sua tese de que “vivemos num mundo globalizado, em que os acontecimentos podem ser apresentados em tempo real, mas não logram se armar numa imagem de mundo que nos conduz a ele como nossa morada”. 

A ideia aqui é a de destacar o permanente estranhamento (ou “incomôdo”, um conceito explorado por Freud, que muito estão chamando de o “estranho familiar”) de não estarmos presente em lugar algum, embora estejamos em todos os lugares, visto que podemos “viajar” para qualquer parte simplesmente apertando os botões mágicos de nosso computador ou freqüentando uma sala de cinema etc.

A vida tornou-se uma busca incessante de satisfação de desejos que, assim que são satisfeitos, abre-se a janela para novas demandas, ajustando-se no prazer aquisitivo de mercadorias, status, sensações provisórias de poder, enfim, economia narcísica que percorre um círculo vicioso rumo ao infinito.

A sensação é de que , neste aspecto, no plano essencial do ser, sentimos de que estamos sempre “sempre juntos, mas quase sempre sozinhos”. 

Ou seja: a realidade alternou-se para longe dos paradigmas do concreto e ganhou os espaços das abstrações extremas. Chegará o momento em que não haverá diferenças entre o virtual e o real e aí teremos que lidar de modo diverso com o nosso consciente e inconsciente. Como será?

Claro que o texto de Giannnotti desenha um momento antes da pandemia. Embora saibamos que há várias décadas havia alertas sobre quadros pandêmicos, mas não havia a situação concreta. Sabíamos que a dinâmica do capitalismo é devoradora, gerando inúmeros problemas que não controlamos, pois sua lógica é a de produção de crises permanentes.

Suas reflexões sobre a teoria da mais-valia de Marx aqui ganham impulso renovado porque reavaliam o tempo histórico, dando-nos a saber que a crise do capitalismo definitivamente não nos levará a nenhuma revolução emancipadora, ao contrário, ela cria e fortalece um vórtice que reafirma a lógica acumulativa, mantendo ao mesmo tempo uma ilusão de mudanças constantes. Paradoxalmente, a pandemia para muitos não significa tragédia, mas sim oportunidades para as indústrias farmacêuticas. 

“Assim como os capitais financeiros não se integram num capital social total, igualmente os setores operários não integram num trabalhador total”, pois “não está no nosso horizonte atual criar um sistema econômico efetivo dispensando os mecanismos de mercado, com suas invenções e suas crises”. Parece que é esse o quadro que estamos vivendo.

No fundo, não há esperança no capitalismo: os ricos ficarão mais ricos e os pobres, na famosa forma piramidal, viverão sempre na pobreza profunda ou relativa, crescentemente habitando as classes médias, em suas variadas escalas de renda. 

As fortunas triplicadas no período pandêmico corroboram a correção dessa ideia de acumulação fantástica do capital financeiro por menos de 1% da população, que, conforme os dados gerais, abocanha mais de 40% de todas as riquezas produzidas. 

O que o filosofo demonstra é que o capitalismo é um sistema até certo ponto previsível e que se nutre de uma dose formidável de imprevisibilidade para sobreviver. 

O capitalismo se renova e o dinheiro é um valor que penetra todas as escalas de valores culturais, criando uma prisão que tem o dom de iludir, pois sem ele não com há como alcançar a “liberdade”.

 É provável que muitos afirmem que a pandemia alterou muito as relações humanas no que toca ao trabalho e ao capital, e que, provavelmente, aquilo que parcela imensa da humanidade viveu nos últimos 20 meses determinará os rumos da cultura nos próximos séculos.

O confinamento (que atingiu mais de 43% da força de trabalho na média mundial) e o sistema de home office determinaram diferentes modelos de relação interpessoal ao qual não estávamos acostumados, forçando um despojamento e desapego que desde a geração baby boomers não era experimentada. 

Os millenials em crise de nervos e agora a síndrome de Bournot são, digamos, os novos ratinhos de laboratórios comportamentais para descobrir o que a experiência da pandemia deixou como legado nos nossos hábitos e gostos, enfim, na nossa modelagem social.

Em muitos países (não há ainda pesquisas no Brasil) parcela significativa de trabalhadores decidiram mudar de vida, ganhar menos, dedicar mais tempo à família, abdicando de altos níveis de consumo, vivendo mais modestamente, porque repensaram conceitos e modos de viver durante o regime pandêmico, o que, de certa forma, está gerando escassez de mão de obra de baixa e média qualificação, afetando principalmente o setor de serviços.

Claro, isso pode ser uma fase. Pode ser também que tudo volte a ser como era antes, mas será que esqueceremos essa fase histórica? Será que o modelo de vida anterior não seria uma corrida maluca para lugar algum? Será que não é o momento de parar e pensar?

 Um fato, porém, é incontestável. No começo do ano, as previsões mais otimistas davam conta de que à medida que a vacinação ganhasse empuxo a economia ganharia em dinamismo e uma onda de prosperidade voltaria a ter força, deixando pra trás tempos amargos. 

No entanto, não foi isso que aconteceu. O mercado mundial nos últimos tempos mostrou que não está conseguindo se readaptar ao novo momento. 

Tem-se a impressão que uma máquina que estava funcionando a todo o vapor e que, por um momento, teve que reduzir gradualmente a marcha e, agora, passada a primeira fase da crise, encontra dificuldades em pegar no tranco, gerando uma imensa inadaptabilidade em ajustar o sistema.

A jornalista da revista Veja Vilma Gryzinski, em sua coluna, escreveu dias atrás que todo “o sistema global está estremecido”. Ela observa que “a Covid-19 assustou mesmo os governos liberais, ao fazê-los descobrir que os suprimentos médicos, de máscaras a substâncias para a fabricação de vacinas, dependiam totalmente da China. E o pós-covid está provocando a constatação: não adianta ter tudo mais barato, de brinquedos a autopeças, se as mercadorias trazidas do outro lado do mundo ficam empilhadas nos portos, sem caminhoneiros suficientes sem esvaziar os contêineres”. No fim, Gryzinski conclui: “pode ser que o mundo encolhido pela globalização esteja ficando menos pequeno de novo”.

Se o mundo está diferente, essas mudanças vieram na esteira de um processo inflacionário (que as novas gerações desconhecem), da perda de valor das moedas, dos aumentos de emissões dos bancos centrais, queda na produção de alimentos, problemas energéticos, aumento das incertezas ambientais, insegurança mental, fragilidade relacional, questionamento de valores democráticos, ou seja, o fortalecimento e domínio da ideia de não-lugar e de que o provisório é aquilo que o linguajar opaco tem chamado de “novo normal”.  

Deparamos agora com um mundo piorado. Parcela da inteligência que se articula na imprensa tem tentado codificar e encontrar a chave desse sentimento difuso que estamos vivendo. Outro dia, a atriz e escritora Fernanda Torres escreveu um artigo significativo na Folha de S. Paulo (“Os Salões”, ilustrada, 11 de novembro), tentando palmilhar alguns caminhos das ambigüidades emocionais que começamos a experimentar. 

Ela tenta no texto capturar sentimentos confusos, algo estranho no ar, sensações de insegurança e, no fim, problemas de readaptação, com o olhar desconfiado ou temeroso de se encontrar com conhecidos, abraçar, beijar, dar vazão aos gestos largos, como se diz.

A falta de traquejo social será cada vez mais percebida: como engatar uma conversa frente a frente? Como enfrentar um restaurante sentado no meio de amigos e da algazarra? Como será freqüentar teatros, museus, cinemas e shows de grandes estrelas? 

Será que fluidos e perdigotos poderão nos infectar? Será que perceberão que estou diferente? Mais gordo? Mais retraído? Menos descontraído? Mais expansivo, falando alto? Será que notarão minha ansiedade e excitação estranhamente ridícula? Devemos falar da vida? Discutir política? O que fizemos nos últimos 20 meses? Os filmes que vi e não quis ver? Guinei para a direita ou afundei o pé na esquerda? Como serei visto e julgado?

Quais vestimentas adequadas? (Tem uma música do Arnaldo Antunes que fala isso).Teremos muitos assuntos acumulados e vamos querer despejar tudo de uma só vez? Seremos irritantes? Seremos mais ou menos intolerantes? Terei mais raiva? Este novo “eu” será julgado da mesma maneira que julgarei o outro? Impressões, impressões...Não será fácil se adaptar.

A volta ao trabalho presencial, à rotina do expediente, do ambiente familiar alterado, o uso das roupas mais formais e apertadas, abandonando as camisetas velhas e os pijamas surrados, ou até mesmo, como tem indicado certa moda, o total abandono às formalidades, pois uma coisa que a epidemia mostrou é que nada é mais importante que sobreviver, sem essa de ostentação, exibicionismo, visto que a tendência poderá ser mais desapego às coisas materiais, até porque o guarda-roupa está cheio e o tempo da pandemia mostrou na prática não precisamos de tanta coisa pra viver.

Assim chegamos a um tempo em que sentiremos cada vez mais essa inadaptabilidade psíquica com os novos tempos, com aquela sensação de que estamos no mundo sem conseguir encontrar nossa morada. É provável que as viagens não sejam mais as mesmas, as férias não serão como as do passado, os encontros familiares serão ainda mais cautelosos, os locais de convívio talvez exalem outras sensações, as pessoas estejam estranhamente mudadas, porque, afinal, a rapidez e o dinamismo da modernidade não suportam passar quase dois anos de alteridade de hábitos e costumes sem traumatizar o manejo das personas no palco social. 

Estaremos, a partir de agora, prenhes de perguntas e procurando desesperadamente por respostas. Acredito que podemos chamar isso de a Era da Inadaptabilidade, pois há sinais apontando de que não tão cedo vamos poder relaxar, haverá sempre uma tensão no ar, uma espécie de artificialismo dando combate à espontaneidade, uma desconfiança permanente pelo fato de que a peste estará sempre à espreita e a incerteza será uma regra permanente a apontar que nenhuma resposta será suficiente tranqüilizadora para se viver a vida como era antes.