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Uma negacionista da fome

Dante Filho ****

Depois que a imagem de pessoas disputando ossos e pés de galinha ganhou a alma nacional o assunto da fome passou a ser esquadrinhado em todas as suas dimensões. 

Até o árido romance de Graciliano Ramos, "Vidas Secas", voltou à voga, sendo objeto de redescoberta das mais variadas esferas culturais. 

O preço dos alimentos, a volta da inflação, a alta do dólar e os reajustes dos combustíveis e do gás de cozinha ganham assim espaço nas páginas de economia e política da imprensa. 

Os números são eloquentes: não há item básico ou supérfluo que venha passando incólume diante das ondas de carestia que vem assolando os países mais importantes do mundo. Nos últimos meses, há elevações gerais de mais de 50%, enquanto a renda média reduz cerca de 15%.

Com isso, a oposição ao Governo Bolsonaro ganha fôlego e o pugilato verbal entra em novo round, tentando levar o que resta da reputação governamental à lona. 

Tudo leva a crer que a situação tenderá a ficar cada vez mais nervosa, sobretudo quando se percebe com maior clareza que o quadro disruptivo do mercado internacional não se trata de nuvem passageira, revelando que a bagunça pós-pandemia veio pra ficar. 

O que chama a atenção, contudo, é que no centro da crise não se encontra uma linha de cobrança da ministra Teresa Cristina. Tudo está sendo debitado na conta de Bolsonaro, exclusivamente. 

A imprensa sabe ser seletiva. Quando o problema é na saúde, o ministro Queiroga paga preço caro pelas falas e gestos do presidente. Mas quando é com a produção de alimentos, tem-se a impressão de que não temos ministérios nem titulares do setor. A César o que é de César. 

Tereza tem sorte ou é mais esperta do que se imagina em não se deixar contaminar pela toxidade de um governo que não tem mínima empatia com dramas sociais.

Outro dia mesmo, em Cuiabá, Bolsonaro e Teresa Cristina fizeram discursos e mencionaram os problemas da alta de preços dos alimentos. 

A ministra saiu pela tangente: afirmou que não estava "preocupada" com a carestia dos alimentos, jogando o problema para o plano internacional, afirmando que as ações do Ministério estavam voltadas para garantir o abastecimento. "Não vamos deixar que as prateleiras fiquem vazia", garantiu. 

Pois bem. Bolsonaro parece que não gostou das palavras da "menina veneno". Dois dias depois, Bolsonaro, em viagem ao interior de São Paulo alfinetou: "teremos pela frente desabastecimento de fertilizantes; o agronegócio já sabe do problema, já aumentou em quase 100% [o preço dos insumos]".

A ministra Tereza Cristina ficou de bico calado. À imprensa, ela jogou a bola para o diretor de comercialização e abastecimento, Sílvio Farnesi, que tratou de afastar o cenário sombrio criado por Bolsonaro. "O mercado tem uma agilidade muito grande de encontrar caminhos para viabilizar oferta", declarou à Folha de São Paulo no dia 09 passado.

A ministra sabe que contrariar Bolsonaro é o início de todo processo de fritura. Como ela vai se desincompatibilizar do cargo em abril do próximo ano não convém brincar com fogo. Por enquanto, ela mantém a pose (falsa) de que é uma boa interlocutora entre o Governo e o agro.

Quem está acompanhando de perto o aumento da fome no Brasil não consegue enxergar o que Tereza Cristina está fazendo nessa área. Ao contrário: só uma abissal indiferença, como se ela fosse uma Maria Antonietta que mandasse os súditos comer brioches em vez de pão. 

O papel da Ministra é deplorável e beira a uma estratégia desumana e de sorrateira indiferença, visto que sua política é garantir o máximo de benefícios para as exportações e o mínimo para o mercado interno. 

Em nenhum momento ela levantou um papel em branco para afirmar que está estudando um projeto sobre estoques reguladores, ou mesmo políticas focalizadas de incentivos de pequenos e médios produtores para garantir pelo menos uma cesta básica mais barata.

Se ela quiser ser senadora pelo Mato Grosso do Sul terá que se explicar. Barriga vazia não dá voto.

Diante disso, é lamentável o papel da mídia brasileira em excluir - e disfarçar - as responsabilidades diretas de Tereza Cristina quando mostra pessoas disputando pedaços de ossos e crianças comendo torrões de açúcar uma vez por dia. Seria moralmente conveniente que a Ministra deixasse de atender apenas os lobbies poderosos do agronegócios e olhasse à sua volta mãos pedintes nas ruas, becos e favelas do País. 

Depois do negacionismo na saúde, Tereza agora inventa a negação da fome, tentando culpar o ambiente internacional pelo caos, esquecendo que o Brasil é o segundo maior exportador de alimentos do mundo.