Dante Filho*
Estou assistindo à série “II Guerra Mundial em Cores” (Netflix, produção britânica de 2009). Venho atravessando madrugadas, capítulo a capítulo, entre fascinado e assustado.
As imagens colorizadas do cenário de guerra dão certa ênfase terrorífica ao acontecimento mais dramático de nosso tempo, do qual somos uma espécie de filhotes geracionais, provocando aflições e perplexidades.
Foi neste contexto que foi "inventado" o chamado mundo pós-moderno. O saldo não é nada edificante.
Até agora, o momento mais impactante foi o que conta a história do "Pacto de Molotov" e a tentativa das tropas Alemãs, tempos depois, de conquistar Stalingrado.
Muito já se falou sobre este capítulo específico da II guerra, mas a narrativa da série da Netflix, de certa maneira, ajuda a jogar um facho de luz sobre a política de um modo geral, especificamente a brasileira dos últimos dias.
Nada é impossível no mundo dos acordos e dos interesses estratégicos de longo prazo.
Claro que é preciso dar um desconto neste tipo de paralelismo, mas o evento que atravessou os anos de 1939 e 45 pode ser visto como uma metáfora das possibilidades e das conveniências políticas na sua incessante luta pelo poder a qualquer preço. Vidas humanas não importam.
Se até Hitler e Stalin sentaram-se à mesma mesa para combinar como dividiriam o mundo, nada impede que se discuta o acordo tácito que vem sendo engendrado entre Lula e Bolsonaro para enfrentar a batalha eleitoral de 2022.
Acho estranho, neste aspecto, quando recebo críticas de que se trata de devaneio ou teoria da conspiração.
Quem leu o último livro de Zygmund Bauman, “Retrotopia”, talvez possa compreender com mais clareza esse elemento marcante da atualidade: a “utopia do passado”, sintoma da perda de esperança, de reterritorialização dos valores e da necessidade de construir um futuro dando passos para trás, apegando-se, enfim, com fanatismo a ondas regressivas em todas as esferas da vida.
Sei que toda leitura política carrega este risco de elaboração meio fantasiosa de nossas experiências históricas. Ninguém pode adivinhar o desdobramento dos acontecimentos do tempo. Mas aprendemos a ler sinais, ouvir ruídos e a perceber a tessitura de fios invisíveis formando um desenho mais ou menos crível da realidade que vai se formando.
Quando Hitler e Stálin formalizaram o pacto de não agressão Germano-Soviética, logo no início da segunda grande guerra, a perplexidade foi geral. Como? Inimigos ideológicos viscerais, antípodas mortais, como puderam chegar a esse ponto? Os “especialistas” da esquerda e da direita ficaram sem chão.
Mais tarde perceberam que Hitler e Stálin estavam dividindo domínios e territórios, enfraquecendo inimigos, cravando seus dentes em nacos de uma Europa polarizada, ampla e profundamente ressentida com os despojos da guerra anterior.
Mais tarde Hitler e Stalin jogaram os termos do acordo de não agressão no fogo da lareira e decidiram se enfrentar militarmente. O cenário do embate deu-se em Stalingrado. Foi uma escolha proposital. Hitler queria ferir o ego de Stalin derrotando-o na cidade que levava o seu nome. Stalin ordenou aos seus generais que não admitiria essa derrota.
Stalingrado foi cercada e destruída. Resistiu. Nenhum dos lados cedeu. Resultado: 1 milhão e 800 mil mortos. Tudo por vaidade. Tudo pelo poder. Tudo pelo domínio e pela satisfação pessoal de dois ditadores sanguinários que aceitavam qualquer crime, menos a derrota. A série da Netflix vale por esse episódio.
No meu caso, não consegui deixar de pensar na nossa paróquia. Lula e Bolsonaro estão se preparando para se enfrentar, tendo já a esta altura formalizado um “Pacto de Molotov” particular e disfarçado, sonhando que o quadro de 2018 repetirá sem grandes alterações de roteiro.
Mas para que isso aconteça terão que rifar Moro, Doria, Ciro, Boulos e mais alguns personagens periféricos, transformando-os em vítimas colaterais – o que já vem ocorrendo, num revertério surpreendente capitaneado pelo STF -, interditando o centro político, deixando apenas despojos para que os eleitores possam optar, mais uma vez, por apenas dois pólos, que representam a linhagem do charlatanismo e do populismo que impedem o pleno florescimento de nossa democracia capenga.
Lula e Bolsonaro apostam em manobras ora invisíveis, mas que prosperam à medida que o Centrão avança com voracidade, ocupando espaços, azeitando a máquina de corrupção, deixando as instituições de joelhos, sem margem de manobras para uma oposição confusa e despreparada, sem eixo nem propósito.
O Corona Vírus, assim, pode ser reinterpretado como metáfora de nossa política. Ela penetra em nossos corpos, contamina o ar que nos rodeia, causa asfixia, não deixando gravidade nem espaço de atração para escolhas que nos coloque fora da esfera dos piores cenários.
Lula e Bolsonaro, por enquanto, se mostram assintomáticos, apenas causadores de uma “gripezinha” aqui e ali, mas seguem firme para invadir com fúria o organismo do hospedeiro, deixando-o em estado grave, num País que há muito está na UTI.
*jornalista e escritor