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Dante Filho: Lembra de mim?


De repente, o casamento acabou. Fim. Foi tudo muito rápido. Mas os fios viscosos entrelaçados nas veias, nas entranhas, nas mucosas, nos dramas diários, nas tramas do tempo, tudo estava lá há muito tempo, machucando, intoxicando, incomodando.

Dias antes, havia acontecido aquela discussão dura e resistente. Ela deu um soco na mesa da cozinha e gritou: “fascista!”. Ele devolveu no mesmo tom: “petralha!”. Ela bateu em seguida: “canalha!”. Ele lacrou: “babaca!”. 

Bateu a porta e saiu de casa. Foi dar uma volta no quarteirão. Fumar.

A última imagem ficara na cabeça: mostravam os dentes e salivavam na direção um do outro. A dança das ofensas ultrapassou a troca de rimas pobres, os chavões de sempre, o bater de portas, os chutes nas cadeiras e, finalmente, os palavrões de praxe, ensaiando uma luta corporal que ficou apenas nas ameaças das calistenias agitadas de um casal em fúria. 

Esta foi a cena do fim de tudo. O amor era ódio, as palavras eram feitas de raiva. E assim foi... assim ficou muito tempo... assim o tempo passou...

A memória humana tem sempre uma narrativa conveniente. Os anos de chumbo foram felizes. A gente se encontrava nas passeatas de protesto, ríamos quando era hora de fugir da polícia, falávamos bonito nas reuniões do partido, nos bares, nas festas; era um gozo, era lindo ver a gente gritando as palavras de ordem contra a ditadura, lutando contra o sistema, querendo mudar tudo, mudar o mundo, mudar o mundo...

Lembra da camiseta vermelha? Do pôster do Chê? Do Bob Marley? Do nosso jeito de ser? Lembra? Lembra? A gente se amava, a gente ouvia música, a gente viajava...Lembra?

Lembra do comício das diretas-já? A Praça da Sé lotada, e nós, com aquela bandeira linda do Brasil, abraçados chorando cantando caminhando e cantando... puxa...! era lindo, a gente se amava, tudo era bom, tudo tudo tudo era divino e maravilhoso. 

Lembra da nossa primeira briga? Você achava que era melhor seguir na Frente Ampla do MDB e eu achava que estava na hora de romper com a burguesia porque ela estava rendida, vendida, conciliando como sempre, e era hora da classe trabalhadora assumir o poder e você dizia que isso era porralouquice e eu dizia chega chega você dizia ainda é cedo ainda é cedo e eu dizia que a revolução era um processo e não ruptura
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como eu gosto de lembrar disso...
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como eu gosto de lembrar de tudo isso...
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Lembra da gente? Ficamos mais de um mês sem se conversar
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depois tudo se acomodou; a gente se amava dentro daquele apartamento
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eu como você; eu comia você e você me comia; a gente se amava e a gente voava nas asas da Panair...lembra? 

Lembra de mim? 

Quando foi mesmo que toda essa história começou? Não a NOSSA “história”, que foi uma esbórnia de alegria e juventude, cabelos ao vento e muita gente reunida...
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essa outra HISTÓRIA, a de 2013, tudo por causa de 20 centavos, quando a NOSSA TURMA levou porrada na avenida DE SUA TURMA, porra!, DE SUA TURMA!!!!
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o que foi aquilo, companheiro? quando nós, você e eu, nós e eles, ficamos diferentes, pensando o mundo de outro jeito, gritando um com o outro, querendo ganhar a luta na marra, com argumentos de duas palavras
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quando foi mesmo? 
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Lembra de nós? 
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Tudo foi ficando corrosivo. A raiva chegou devagar. Foi entrando, foi penetrando, foi ficando. As discussões políticas ganharam pouco a pouco todos os espaços em nossos ventres. 

Os corações foram se dividindo, a vida foi se partindo, o amor deixou de ser palavroso e transbordante, largo e aberto, e um silêncio cuidadoso começou a ocupar todos os espaços de nossas vidas.

O som ao redor era sufocante. Bastava um olhar diferente na hora do Jornal Nacional, que, de imediato, um manto de desconfiança mútua abraçava nossas diferenças e a eterna discussão começava. “Fascistinha!”. “Petralha!”

Primeiro, os comentários inocentes, as impressões momentâneas, depois as ironias; em seguida, as piadinhas de mau gosto; depois, gritos e, no final, a batida seca na porta do quarto. No dia seguinte, ao levantarmo-nos tudo era frio e seco. 

Aí veio o golpe. Aí veio impeachment. Aí veio a semântica. Aí veio a narrativa cacofônica. Aí veio aquela coisa na qual a razão desmorona e todos estão certos e errados ao mesmo tempo. 

Nos grupos de watts nós brigamos muito. O pai brigou com a mãe, depois brigou com os irmãos, depois brigou com os primos que brigou com a gente e a gente foi brigando com os amigos e nada sobrou diante de tanta ofensa, de ódio e raiva – sempre raiva – burro louco canalha fascistóide ladrão golpista

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Primeiro, acusaram; depois, prenderam; por último, veio a eleição. Nossas vidas foram invadidas pelas larvas e pelas chamas do ódio; no meio, os insultos, as brigas, os nervos à flor da pele; nosso casamento era esse tumulto dentro da multidão de todas as nossas raivas e loucuras, constituído de disputas, que, às vezes, parecia comédia... e assim o teatro encenado no palco vazio seguia sua marcha na direção das incertezas, dos temores, dos debates inócuos, até descobrirmos que éramos dois monstros habitando o mesmo pântano.

Depois ficamos nus. Descobrimos que dentro do guarda-roupa nada que havia servia, as cores perderam os sentidos, não dava pra tocar fogo no apartamento; não dava pra pensar, a gente só sentia ódio, eu quero ir embora, quero dar o fora e não quero que você vá comigo, fascistinha, comuna, vai pra Cuba e seja feliz na Venezuela sua tonta, seu tonto...
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Depois tudo piorou. Tudo foi quebrando, esfacelando, triturando. Ficamos cada vez mais fragmentados, caquinhos de vidro com as pontas para cima. Todos os filmes começaram a ficar em preto e branco. Pare de zurrar, porra?! Você adotou algum bandido de estimação, caralho?! Vai chupar o cu de sua mãe, corrupto! Porco! Asno! #elenão #elesim. 
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Mensagem: Olha, não fala mais comigo, reacinha. Você é fascistinha! Você é uma merda! Fica com seu pessoal que eu fico com o meu! Nunca mais quero ver você e sua família Adams!
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Lembra de nós?