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Dante Filho: Vende-se: memórias da crise


Vendo minha casa. Vendo meu carro. Vendo minha moto. Vendo minha loja. Vendo meus quadros e meus livros. Vendo meus tapetes. Vendo meus discos e meus CDs. Meu computador (nesse mesmo que estou escrevendo agora) está à venda. Vendo meus móveis; alguns imóveis ( na lua e na terra).
Vendo minha bicicleta. Vendo minha máquina de lavar roupa. Vendo meu forno microondas. Vendo meu fogão, vendo minha esteira, os vasos da sala, o espelho do banheiro. 

Vendo meu cartão de crédito junto com o plano de saúde. Vendo meu cachorro e meu gato. Pensei bastante, mas vendo também meus passarinhos. Meus peixinhos de aquário, esses (triste, né?) podem levar. Uma bagatela. Vendo algumas garrafas de vinho fajuto. Vendo meia garrafa de uísque e aguardentes mexicanos. 

Vendo meus cadernos de anotações. Vendo alguns contos e poemas não publicados. Vendo meus lápis coloridos. Vendo as fotografias de minhas tias dos anos 50. Vendo jornais velhos. Vendo dois abajures que não funcionam. Vendo um aparelho de DVD queimado. Vendo uma TV dos anos 70 (ainda funciona). Vendo minha aparelhagem de som. Vendo meu faqueiro. 

Vendo algumas roupas velhas, ternos usados de linho, calças boca de sino, camisas floridas, sapatos de couro de crocodilo, meias de seda furadas, tênis sujos e apodrecidos, camisetas de algodão descoloridas, bermudas com 12 bolsos, cuecas americanas, calcinhas de antigas namoradas, lencinhos de alguns amigos bibas, cabides, além de alguns apetrechos como gravatas, coletes de couro e abotoaduras acrílicas douradas. 

Estou vendendo xícaras de porcelana barata, copos e taças, cortadores de papel, lanternas sem pilha, panelas de aço, placas de homenagens, álbuns de figurinhas, cubo mágico de madeira, caixas de papelão para presente, óculos quebrados, capas de celulares que penduram na aba das calça, sabonetes jamaicanos e perfumes de putas.

Para quem interessar possa, estou entregando a preço vil duas caixas de ferramentas de carpintaria, uma lata de bolacha (vazia) fabricada na Suíça, um jogo de velas perfumadas, dois pares de chinelos havaianas, um guarda-sol de praia meia boca, três conjuntos de flores de plástico (nas cores azul, vermelho e amarelo) e um tapetinho de gel fabricado na Alemanha para ser usado durante o banho, e não escorregar.

Depois de muito pensar, decidi vender (quanta dor no coração!) alguns carnês em atraso das Casas Bahias (tudo com deságio), além de várias cartas de cobrança da Secretaria da Receita Federal. De lambuja, passo para frente IPTUs, IPVAs, contas de luz e água, e toda a sopa de letrinhas que pagamos para o Governo dizer que está tudo bem e que o sofrimento durará até 2056. 

Aproveito para comunicar que vendo meu emprego, meu salário, minha sala e minha mesa. Vendo minha rua esburacada, os semáforos quebrados e os canteiros centrais das avenidas. Se for possível, vendo a cidade com toda a sujeira que tem dentro dela. 

Vendo o tempo de trabalho e de descanso. Vendo meu choro e minha risada. Fiz as contas, vendo minha aposentadoria futura. Vendo o sol e a lua. Vendo o que não tenho e nunca vou ter. Vendo meus sonhos e meus pesadelos. Vendo minha raiva e minha indignação. Vendo a desesperança de minha geração. Vendo o ar que me rodeia, o meu respirar e o suspirar. Minhas medalhas e as velhas cartas de amor.

Vendo tudo por qualquer preço. Vendo o gesto da oferta e as mãos que calculam. Vendo minha memória e meu dom de mentir. Vendo tudo sem medo. Vendo até meu corpo. Se você achar que está muito caro, tudo bem, entrego junto minha alma.


*  texto publicado no final do Governo Dilma