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Alexsandro Nogueira: Pulando a cerca


A turma começou a chiar por causa da presença dela na festa de fim de ano da firma. Os colegas do marido a desprezavam e davam as costas como sinal de protesto à sua participação no evento.

Ela não dava bola para as provocações e seguia circulando por entre as mesas, até que, de repente, uma fulaninha, lá do fundo do salão, gritou bem alto: “Essa mulherzinha tá dormindo com meu homem toda semana!”.

Pronto, foi o maior climão. O marido traído não sabia onde enfiar a cara de vergonha e a mulher adúltera foi baixando a cabeça. No mesmo instante, o amante puxou a delatora pelo braço e ambos saíram da festa às pressas.

Os convidados, sem entender nada do que estava acontecendo, foram para a varanda do clube cochichar, enquanto a adúltera permanecia dentro do salão aos prantos, desfigurada e com a maquiagem toda borrada.

Assim terminava o ano de ouro nos negócios daquela empresa de calçados, onde  trabalhava boa parte dos moradores da cidade.

Lugarejo afastado, carregado de ternura e com clima interiorano, Vila Maciel tinha pouco mais de 20 mil habitantes e uma característica marcante: a fama de que parte das mulheres do pedaço traiam despudoradamente durante o período de expediente dos maridos. 

Era esse o motivo pelo qual boa parte dos convidados da festa mencionada acima rejeitava aquela mulher. Era uma maneira de sentar no próprio rabo e expurgar os próprios pecados acusando a outra de safada.

Adiante.

Depois do vexame na festa, o caso ganhou amplitude, motivos pelos quais ela não quis mais colocar os pés para fora de casa. Ficava no quarto de costura, amuada e concentrada nos arremates das roupas dos filhos e do marido.

Já o marido, acabrunhado, e com uma sensação estranha de algo crescia em sua magnífica testa. Os mais linguarudos juravam que aquilo era apenas prenúncio de outra guampa na têmpora e, desta vez, das grandes!

Nas esquinas, aquela velha turma de amigos que passava horas pontificando nos bares da vida olhava para o marido traído com sentimento de  piedade: “Pobre homem, dá o sustento da casa e aquelazinha deu conta de fazer isso com ele”, sussurravam.

Mas em meados daquele mês resolveu tomar atitude e mostrar para todo mundo que era sujeito “homi” e não um corno abobalhado. A melhor maneira para isso seria limpar sua honra e lavá-la com sangue do (ex) amante da sua mulher.

Para isso, arquitetou um plano infantil: acordou cedo, calçou os sapatos e andou pela redondeza na tentativa de arrumar uma arma clandestina. A empreitada foi em vão e ele voltaria pra casa com o sintoma emocional de que haviam  sinais  na sua testa.

Perto do fim de semana, viu se aproximar um homem esquisito, de voz rústica e de poucas palavras. A única frase que o camarada disse foi emblemática: “Faço o serviço pra limpar a honra do amigo e não cobro nada não”.

A proposta era atraente: custo zero, discrição e não precisaria sujar as mãos. Isso por si só já era o suficiente para  tramar algo com requintes de crueldade contra o amante.

O plano seria o seguinte: perto do fim do dia o matador montaria uma tocaia no terreno atrás da empresa e o sujeito cairia numa emboscada fatal, sem chance de reação. 

A arma do crime seria um canivete, que, conforme o marido traído, lavaria sua relação conjugal com o sangue provido das entranhas do morto. Trágico, mas justo.

No dia do crime, o céu amanheceu nublado, com nuvens carregadas, uma coloração acinzentada. Era o prenúncio de um crime passional perfeito.

Mas minutos antes das estocadas na barriga do (ex) amante, o marido traído teve uma crise de arrependimento e correu para desfazer o trato com o matador. Já era tarde demais. Ainda não tinha acabado de chegar à cena quando viu de longe os golpes que levaria o sujeitinho para o cemitério.

Em seguida, o matador saiu correndo para nunca mais ser visto naquela cidade. No local, um corpo estendido na calçada, um canivete ensanguentado e um homem arrependido chorando no chão.

Na esquina, uma multidão foi se formando, gritando e aplaudindo um mandante cheio de remorso: “Você se fez homem novamente e o sangue desse safado vai lavar sua união, amigo”.

Foi o tempo dele deitar seu abdômen sobre o mesmo canivete e estrebuchar sobre o corpo da vítima. Era uma forma de se redimir do crime e encontrar perdão a sete palmos do chão. Ninguém entendeu nada.

Minutos depois, o motivo do crime chegou. Por alguns instantes ela permaneceu quieta, fitando a cena até se debruçar sobre os dois cadáveres. Em seguida, sacou um batom bem vermelho da bolsa, espalhando por sua boca e começou a beijá-los ardentemente com a intensidade de uma despedida carnal.  

Antes de deixá-los, não agüentou o falatório e as acusações e soltou um grito que misturava irritação e revolta: “Eu não tenho culpa. Soube amá-los em vida e agora serei fiel a ambos na morte”.

Os amigos entenderam o gesto como uma provocação e partiram para cima dela. Acuada, ela correu para rodovia que ficava bem pertinho do local, mas não teve percepção em olhar para os lados e foi colhida por um caminhão. Era o ponto final de um triângulo amoroso que comoveu Vila Maciel.

No dia seguinte, metade da cidade chorava a tragédia. A outra parte lamentava, mas com um olhar vazio e voz rancorosa comentavam: “Ela pagou com a vida porque não merecia o perdão”.

*jornalista