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Dante Filho: Animais de estimação


Numa madrugada fria dos últimos dias, acordei abruptamente sonhando com um estranho gemido. Como não conseguia dormir, resolvi perambular pelo apartamento, vagando em busca do sono já perdido, arrastando-me na penumbra da sala como se fosse uma alma penada  girando em torno de mim mesmo, olhando os móveis e os tapetes como se fossem lápides de filme de terror.

Depois de um breve silêncio, ouvi um berro insistente que julguei ser de uma cabritinha. Fui até a janela e não vi nada na rua embaixo. Aquele balido distante tornava-se cada vez mais real, deixando de ser uma fumaça de sonho para se tornar uma verdade absoluta naquele mundo insone no qual eu estava perdido.

Fiquei intrigado, mas permaneci estacado na janela ouvindo o béeeee sincopado e intermitente vindo do andar de baixo. O som continuou madrugada adentro.

No dia seguinte, de passagem pela garagem, disse ao zelador que havia ouvido uma cabrita berrando de frio durante a noite. Ele sorriu, e adiantou: “É lá na dona Débora do 703 que agora está criando uma cabritinha no apartamento. A coitadinha ainda não se acostumou e não para de chorar”.

Olhei incrédulo e não aguentei: o que ela fará quando a cabra crescer?

No que ele redarguiu, aflito: “Ah, isso eu não sei; mas o síndico está preocupado...”

Aproveitando a deixa, ele mandou ver: “a dona Fernanda da cobertura está criando uma porca da raça Hampshire”, riu.

Girei os olhos, lembrando de uma amiga que outro dia comentou - pensei que fosse brincadeira - que estava pensando em criar uma capivara dentro de sua Kitchinette.

Ele continuou falando: “todo dia de manhãzinha dona Fernanda sai faceira que só com o bicho na coleira para passear”, comentou.

Fiquei em silêncio, respirei, e deixei o homem continuar a falar: “Nossa!, o senhor precisa ver como a porca está cevada, bonita, toma banho de banheira, usa xampu especial, come frutas e legumes escolhidos a dedo, sem contar a ração especial que vem da Inglaterra...”

Balancei a cabeça e deixei o homem fluir: “olha, eu não sei o que vai acontecer, mas me falaram que daqui a um ano a porquinha da dona Fernanda estará pesando uns 200 quilos!”, afirmou, fingindo perplexidade.

Já ia me despedindo, quando ele, enfim, deu de ombros, e fez o último comentário: “esse mundo está perdido, o senhor não acha?”.

Sinceramente, não sei se o mundo perdeu-se, se as pessoas piraram, ou se a culpa é da entrada de mercúrio na constelação de escorpião anunciando uma nova era, mas temo que um dia veremos pessoas criando bois e vacas dentro de apartamentos majestosos, quando não gorilas trazidos da Nova Guiné.

Uma vez vi uma foto de um cara que levou para seu apartamento minúsculo em Nova York uma onça pintada. Sei que milionários sauditas e mexicanos criam em casa guepardos aos montes.

Dentro em breve, seguindo essa ideia da evolução da espécie, cães e gatos estarão fora de moda como animais de estimação. Isso sem contar que, nesse período eleitoral, a população de jumentos deve aumentar exponencialmente nas residências das famílias e das redes sociais. 

É assim que caminha a humanidade. O mundo, realmente, está perdido.