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Dante Filho: Abaixo a Ditadura

O texto abaixo foi publicado no final de 2012. Teve pouca repercussão. Mas hoje o relendo percebo que sua essência analítica permanece intacta, pelo menos do ponto vista histórico, sobretudo quando olhamos os acontecimentos do ano seguinte, as chamadas “jornadas de junho de 2013”. 

A ditadura, antes de ser uma condição política, é um estado mental. Digo melhor: as ditaduras sobrevivem em nossas vidas depois que elas deixam a cena, parasitando a cultura de maneira determinante. O Brasil viveu mais tempo sob o jugo do autoritarismo do que sob a democracia. 

Aliás, há dúvidas sobre se o processo democrático está realmente consolidado no País. Volta e meia alguém levanta essa hipótese (a de que o esquematismo ditatorial permanece entre nós, impávido e colosso), questionando se a tradição brasileira nos coloca em sintonia com os modelos de sociedades abertas, culturalmente desenvolvidas e juridicamente avançadas.

A ditadura permanece como um dado latente de nossa realidade. Ela está incrustada na alma brasileira. Lembro-me das sensações que vivi no começo da década de 70: medo de falar, de escrever, de se manifestar. Havia, é certo, relativa prosperidade econômica, mas havia também total restrição de liberdade. O presidente da República (Médici) estava com a popularidade nas alturas, mesmo acumulando imenso passivo democrático. Com isso, vivíamos uma fase em que a impotência políticas e somava à indiferença.

O momento era de despolitização absoluta. A saída era o desbunde comportamental. A esquerda vivia sob opressão. O centro conformava-se com o consumismo que se ancorava no ideário do Brasil grande. E a direita regalava-se com as benesses do Estado. Tudo como sempre.
Guardadas as proporções - e relativizando o tempo histórico - , a “ditadura” de agora (juro que quase escrevi “ditabranda”) guarda semelhanças sentimentais com aquele momento. Claro, não há medo nem restrição absoluta à liberdade de opinião e de manifestação (apesar de que o Judiciário às vezes cede aos interesses da autocracia).

Mas a mesma sensação de impotência aproxima os dois períodos. Uma impotência nascida da incapacidade de esclarecimento acerca da natureza bruta dos fatos políticos. Na ditadura militar, a opressão causava horror. Na “ditadura” atual que estamos vivendo ( que muitos chamam de pax luliana), o que oprime é outra coisa: a apatia, o desinteresse pelas causas gerais e a narcotização social vivida na forma de frenesi consumista.

A indiferença social pela ação política é a marca de nosso tempo. Parte expressiva da esquerda calou-se com as “boquinhas”. O centro está seduzido pelas compras financiadas a crédito. E a direita vive seu momento de glória: assenhorou-se, pelos métodos conhecidos de peemedebização do Estado, promovendo as maiores transações entre o público e o privado que se tem notícia na história do País.

Colocar-se como sujeito contrário a esse processo, no plano do debate conceitual é complicado. Primeiro, devemos nos armar contra o reiterado argumento paralisante: “popularidade do presidente Lula” dado citado a todo instante pelo conjunto da opinião pública aderente, como se isso por si só fosse garantia de manutenção do establishment. Esta idéia abranda o senso crítico para manter o sentimento de manada. Esse é o consenso medido por institutos de pesquisas que tem atordoado aquela parcela esclarecida da sociedade, que já percebeu faz tempo que não estamos indo pelo melhor caminho.

Diante deste quadro, permanecem presentes na sociedade brasileira os esquemas mentais da ditadura. Só que agora – diferente do passado – a contrariedade (chamada a grosso modo de “oposição”) é colocada na conta de um udenismo retrô. A contrapropaganda governista diz o seguinte: criticar o populismo é rançoso; denunciar a corrupção não cola; combater Sarney, Renan e Collor é inútil. 

Assim, para o lado que se olha, só se vê a máquina pesada da propaganda ufanista dominando um cenário destituído de alternativas, pois a agenda foi dominada pelo conceito do Estado forte. Dá medo.

As ditaduras só podem ser combatidas nas ruas. Penso que a visibilidade do grito tem que ganhar espaço no cenário público.Murmúrios pela internet não bastam. Muitos afirmam que os brasileiros perderam a capacidade de se indignar e que estão anestesiados. 

Outros observam que a ignorância ganhou status de sabedoria por meio de opiniões cínicas que tentam classificar que “todos os políticos são iguais”, ou, então, que o erro de um justifica o do outro. De pouco adianta reclamar da supressão dos conceitos éticos. É preciso saber que uma sociedade que se descobre com razoável capacidade de consumo é otimista por natureza.

À medida que o mercado interno brasileiro se fortalece os valores morais tornam-se mais difusos porque a capacidade (maior ou menor) de aquisição de mercadoria cria um valor acima de todos os outros. Com isso, fundam-se as diferenças entre os estamentos sociais e acirra-se o debate ideológico.

Este fla-flu é típico da mentalidade ditatorial. Não adianta explicar ao cidadão contaminado pelo discurso da retórica defensiva que o debate sobre questão de mérito transcende as pessoas.

Ele ainda não percebeu que Lula, por exemplo, é criticado apenas como elemento emblemático dos erros morais que o País vive, mesmo porque ele vem estimulando de maneira grosseira a quebra dos padrões éticos de uma sociedade que sinaliza que o desenvolvimento com liberdade é, na verdade, um processo gradual no qual se aspira, no mínimo, melhores condições civilizatórias.

O Governo tenta embalar a sociedade no clima do patriotismo acrítico, no oba-oba do pré-sal, na estadolatria como modelo da salvação, lembrando o modelo publicitário dos anos 70.

Há uma aposta no marketing do nacionalismo fútil, acreditando que, dessa maneira, suprimindo os valores da cidadania e enaltecendo afigura do comprador compulsivo, a política torna-se caudatária dos movimentos chapa-branca.

No fim, resta uma contradição histórica que machuca aqueles que, na luta contra a ditadura militar, acreditaram que era possível existir outro País com a chegada das esquerdas no poder. O PT construiu-se apostando na emancipação das massas dominadas pelo capitalismo concentrador e patrimonialista. No poder, fez tudo ao contrário. E agora se sustenta como simulacro da “popularidade midiática” de Lula, incentivando as bases do consumismo burguês com a retórica dos governos autoritários. Seria cômico, não fosse trágico.