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Dante Filho: a arte não significa mais nada



Texto publicado originalmente no jornal O Estado de MS em 2012, mas que continua valendo nos tempos que correm.

Já foi o tempo em que as artes de modo geral eram difundidas a partir de filtros seletivos. Até o final da década de 80 era possível identificar tendências, acompanhar lançamentos, estudar estilos e participar do debate cultural com relativa facilidade. Não mais. Agora vivemos a era da mixórdia. 

Com a profusão de artistas, de performáticos ocasionais, das celebridades midiáticas, o conceito do que seja arte, não-arte, contra-arte, antiarte, explodiu, criando uma confusão dos diabos. Daí a frase reativa quando surge qualquer figurinha nova na onda: “famoso quem?!”

Diante da perda de referenciais estéticos, ou seja, do que seja de fato arte e não golpe publicitário, a leitura sobre as produções artísticas entraram numa esfera nebulosa, tornando-se espaço de ultra-especialistas, gente antenada, figuras exóticas, pessoas, enfim, que se expressam por meio de uma linguagem quase inaudível. 

Por causa do excesso de produção (de baixa, média e alta qualidade) não se tem muito claro onde está o centro e a periferia, qual a base de apoio teórico, quais as explicações possíveis sobre valores astronômicos de uma “escultura” de animais empalhados dentro de aquários, ou de cachorros vivos amarrados dentro de museus, ou mesmo de um varal com roupas usadas penduradas dentro de uma galeria, como se tudo isso fosse arte porque representa uma rebelião da ideia do que seja (vejam só!) arte. 

Analisemos um caso próximo e trivial: ninguém tem dúvida de que Almir Sater seja autor de “músicas regionais”. É fácil identifica-lo no tempo e no espaço. Quando ouvimos suas canções e quando vemos sua imagem (rapaz pacato, usando chapéu de boiadeiro), tocando viola, fazendo de sua lira ode ao pantanal, por exemplo, fica fácil associá-lo ao lugar onde vive e em que se inspira. Ou seja, com Almir estamos numa zona de conforto de identificações estéticas. 

Agora, tentemos fazer o mesmo raciocínio com Michel Teló e Luan Santana. Eles são artistas sul-mato-grossenses? Eles produzem arte regional? Eles são criadores de cultura? É complicado responder isso porque ambos são “artistas de mercado”. Mais: fazem sucesso imenso no sedicioso plano da cultura de massas, o que provoca uma espécie de descentralização do pensamento. Mas mesmo assim seria curioso saber o que eles pensam sobre a matriz conceitual (ou cultural) de seus respectivos estilos, porque é irresistível a tentação de embalá-los em rótulos, sem desprezar o fato de que produzem algo completamente desterritorializado e fora do contexto “regionalista”.  São bregas? 

Sim, mas quem não é hoje em dia. 

O fato concreto é que a expressão artística cada vez mais sofre deslocamentos. Com a crescente oferta de mão de obra é claro que isso cria excesso diluidor. Assim, tornou-se normal que gente sem talento para se expressar invista pesadamente em autopromoção para ocupar espaços no mercado fluído das (pseudo) celebridades. Isso pode resolver o problema de sobrevivência de muitos personagens, principalmente quando existe um aparato estatal que fornece todo o tipo de boquinha, sem exigir nada em troca que não seja a militância formal em torno de causas que pacificam o status quo. 

Por isso cresce a tendência de se voltar para o que é consagrado pelo mercado, de um lado, e para a tradição canônica, de outro. Vejam o recente caso da exposição das obras de Caravaggio no Brasil. O público invade os museus para ver obras altamente referendadas pela história, numa espécie de celebração do sagrado, graças à beleza e à fortuna crítica obtida ao longo de séculos de apreciação minuciosa e acurada. 

Estamos vivendo um tempo estranho. As narrativas são mais e mais caleidoscópicas. Como perdemos a noção de valores e há uma crescente e aterrorizante incerteza em relação a tudo, apega-se, quando dá, ao passado, às tradições e ao consagrado pelo gosto, digamos, popular. Por isso assistimos a essa profusão de remakes, da cultura cover, das baladas que marcam a passagem das décadas de ouro, tudo isso misturado, numa cacofonia que nos joga de lá para cá, pra cima e pra baixo, sem que possamos refletir com certa calma sobre o que realmente vale a pena e o que é importante no mundo das artes.

Sabemos que a arte existe. Só que ela não significa mais nada. A palavra foi esmagada ao ponto de fusão. Talvez isso, por mais paradoxal que pareça, acabe por criar uma força motriz que a revitalize. Sou otimista. Não há pensamento único e fechado neste campo. 

O conceito de fetiche das mercadorias é amplo demais. Os avanços tecnológicos, de fato, tem o poder de criar embaraços das ideias e fazer fluir nossa inadaptabilidade. Mas a tecnologia também nos salva. Por isso, o que tranquiliza é apenas uma certeza: no futuro vamos continuar falando do futuro, tentando compreender qual a magia que fermenta nossos sentidos a cada instante do presente. Para sempre.