Na semana passada, depois que comentei no facebook que a escultura-sofá de Manoel de Barros, produzida pelo Ique, era uma grande “picaretagem”, amigos que prezo me chamaram a atenção para a gravidade do termo.
No balanço entre curtidas e críticas, a maioria concordou comigo. Mas como as pessoas que me chamaram a atenção pela maneira chula com que tratei o “artista” têm a minha estima e consideração, vi-me obrigado a fazer um esclarecimento público sobre o assunto.
Primeiro: a estátua-sofá de Manoel de Barros é banal, peca por excesso de realismo, foi elaborada como peça de marketing turístico, não tendo nada a ver com o espírito da obra poética de Manoel.
Para que uma peça escultórica refletisse a invenção estética do poeta teria que ser algo que transitasse entre o surrealismo e o abstracionismo.
Manoel detestava obras figurativas. Seu autor musical preferido era Erik Satie e seu pintor Paul Klee. O poeta amava Van Gogh, mas quem pode dizer que o holandês maluco pintava figuras?
Qualquer artista que embrenhasse pelo trabalho de esculpir a imagem de Manoel devia ler um pouco sobre os gostos estéticos do poeta quando estava vivo.
Mas o que questiono na obra de Ique não é apenas o valor artístico da obra, mas o contexto moral em que se encerra.
Em minha opinião, trata-se de apropriação da imagem de alguém que se tornou celebridade nesse pequeno mundo que é o da poesia.
Me dizem que no Brasil menos de 3 milhões de pessoas lêem obras poéticas.
Mesmo assim, Manoel tem lugar garantido no panteão dos melhores poetas brasileiros.
Sua obra é singular (principalmente a partir dos anos 80) e poucos conseguiram dar um passo à frente no uso estrutural da linguagem como ele, renovando-a e promovendo um arejamento inédito na construção de imagens com palavras.
Antes dele, só vejo Guimarães Rosa e Fernando Pessoa, mas isso é um papo longo demais para esse artigo modesto...
O problema agora é a mitologia que se tenta criar em torno de um escritor que, durante toda a vida, foi avesso e crítico dessa espetacularização xucra da arte.
Nesse aspecto, Ique – que provavelmente nunca leu a obra de Manoel, muito menos alguns ensaios sobre ela – foi infeliz em criar uma peça escultórica de extremo mau gosto com o fito de “estimular” o turismo e a banalidade da arte, colocando o poeta num sofá para que as pessoas pudessem tirar “selfie” para curtição e comentários nas redes sociais.
Nada contra. Mesmo considerando o fato – ironia, ironia – de que poderá haver gente vendo uma espécie de “perigo” caso apareçam crianças querendo sentar no colo da estátua para ser fotografada...Tem tanto maluco por aí...
Mas a grande picaretagem não está nisso. Não sei quem foi que deu essa idéia de jerico para o governador bancar com dinheiro público esse projeto.
Inúmeros artistas e jornalistas juram que a estátua foi superfaturada. O Ministério público não manda investigar porque tem medo em tocar num ícone cultural. Mas devia.
É provável que Ique, numa tacada oportunista, tenha levantado mais dinheiro com esse monstrengo do que Manoel a vida inteira com a edição de seus livros.
Para escrever os poemas que Mané produziu não bastava apenas ter o dom.
Quem é do ramo sabe: é preciso uma formação sensível, leitura variada e sofisticada, viagens e paisagens, trabalho solitário e árduo, angústias existenciais, concentração e pensamento. Isso não tem valor tangível.
Não se pode conceber que seja moralmente correto que apareça um picareta com fama de "artista consagrado" e levante mais de R$ 200 mil, se apropriando da fama alheia - conquistada pelo talento puro e autêntico - sem que essa grana seja revertida para o desenvolvimento da literatura de nosso Estado.
Esse é o ponto. Se Ique tivesse produzido a estátua com seus recursos e, com o dinheiro auferido num leilão, por exemplo, lançasse prêmios literários para estimular a produção poética em nosso Estado, eu aplaudiria. Mas fazer um grande jabá em Mato Grosso do Sul para investir no Rio de Janeiro, não dá, é inaceitável.