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Paulo Cabral: A volta da Censura


O avanço da onda conservadora no mundo ocidental é inegável. Os fundamentalismos recrudescem, espalhando ódio. Crescem as manifestações de intolerância nas diversas esferas da atividade humana, em todos os lugares. Aqui, o quadro “Pedofilia”, uma expressiva obra de Alessandra Cunha, foi retirado de exposição no Museu de Arte Contemporânea, por conta do boletim de ocorrência registrado pelos deputados  Cel. David, Herculano Borges e Paulo Siufi que, entendendo tratar-se de incitação ao crime, fizeram essa representação.

A par do factoide promovido pelos parlamentares, (será que não há nada mais importante a discutir nessa conjuntura em que a classe política está chafurdada na lama da corrupção?) resta a truculência da censura, o moralismo típico das marchadeiras de 64, das senhoras de Santana, guardiãs da moral e dos bons costumes. Aliás, são essas mesmas figuras que fazem a apologia da “Escola sem Partido”, imaginando a possibilidade de suprimir a dimensão política da  educação, como se isso fosse possível.

Resta também uma demonstração de ignorância. Deixaram-se impressionar pelo título do quadro, sem olhar para o seu conteúdo. Todos sabem que uma obra de arte, seja qual for o campo da manifestação artística, só se realiza com a interação que estabelece com o seu receptor. 

Além do autor, é necessária a participação do leitor ou espectador, que também atribui sentido à obra, completando-a. Por essa razão, um mesmo texto pode ser recepcionado de diferentes formas, pode ser lido de muitas maneiras, a depender do repertório mobilizado para a sua decodificação ou interpretação.

Quem se posta diante da  tela Pedofilia jamais será incitado à prática sexual,  porque ela não guarda qualquer elemento capaz de mobilizar ou excitar a libido de ninguém, a menos que se trate de pessoa com severo distúrbio de formação. Ao contrário, as cores do quadro,  remetem  à introspecção, há até uma certa tristeza naqueles pretos e roxos sobre o fundo amarelo; a angústia  (ou será espanto?) transmitida por aquele olho solitário é de uma intensidade desconcertante; a figurinha da menina, absolutamente assexuada, um signo a denunciar o crime de abuso sexual, e o texto escrito em azul é inequívoco “o machismo mata violenta e humilha”,  vitimando meninas e mulheres de todas as classes sociais. Uma denúncia da pedofilia e da violência contra as mulheres,  uma obra política, na medida em que instiga a reflexão e a discussão sobre essa importante questão.

E aí, induzidos pelo título da obra, sem serem capazes de compreender o seu sentido (talvez sequer tenham visto o quadro) os três parlamentares, no uso de seus mandatos, lançam-se ao patrulhamento e nos oferecem esse triste espetáculo. 

Foi inevitável lembrar-me de um fato  acontecido em uma pequena biblioteca do interior e que circulava entre os estudantes de história, na segunda metade do século passado.  Recebido o exemplar do  livro Raízes do Brasil, clássico de Sérgio Buarque de Holanda que faz uma interpretação da formação brasileira na perspectiva weberiana e forja o tipo do “homem cordial”, a pessoa responsável pela organização do acervo, ao ler o título, não teve dúvida, colocou-o na prateleira de botânica, supondo tratar-se de tubérculos. Qualquer semelhança  não é mera coincidência. 

Quando o cel. David, porta-voz do grupo, diz que “se a artista quer fazer discussão de gênero, que vá fazer na casa dela”, mostra não só  truculência, como também expõe o machismo condenado pela obra. É preciso ler os sinais, para além desse episódio de censura, pois nele é nítido o movimento na contramão do ideário democrático; a mistificação contida na indignação do falso moralismo, a “defesa” da verdade única, todos elementos que encaminham para soluções salvacionistas e desaguam na supressão da Liberdade.

A Democracia brasileira é ainda uma árvore tenra a exigir todo o cuidado! Parafraseando o udenista Eduardo Gomes, “o preço da liberdade é a eterna vigilância”. 


sociólogo e professor