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Wilson 100 anos- Entrevistas Inéditas (parte 1): O começo de tudo



 “Vivíamos em isolamento do mundo. Não havia rádio nessa época, não existiam órgãos de comunicação de massa, nem havia massa para ser informada”.


O Blog hoje inicia a publicação de uma série de entrevistas exclusivas com o ex-governador Wilson Barbosa Martins, que, nesse 21 de junho (quarta-feira) completa 100 anos de vida. 

No total, foram 40 horas de material gravado entre maio e junho de 1999, que resultou em 10 depoimentos editados. Os trechos de bate-papo (feita para aquecer a gravação ) foram suprimidos. 

Originalmente, as entrevistas tinham o propósito de servir para a publicação de uma biografia autorizada. Não deu certo. Um dia conto essa história que, adianto, não tem nada de notável e especial. Coisa humana perfeitamente normal.No momento ela é irrelevante, apenas uma fugaz curiosidade.

Como o leitor poderá notar, os depoimentos compõem-se de conversas informais. O que se pretendia era que a memória fluísse sem compromissos documentais, sem o rigor com acontecimentos, nomes e datas, visto que a relação amigável que tínhamos (eu e Wilson) permitia que pudéssemos construir um texto final revisado e editado a quatro mãos num período posterior.

Com o tempo essa tarefa tornou-se impossível. Depois de passados quase 20 anos, analisando detidamente o material, julguei ser desnecessário manter o rigor acadêmico em relação à publicação, até porque corria o risco de perdê-lo a qualquer momento. 

Decidi me ater ao espírito daquela conversação de muitos dias e muitas horas agradáveis que passamos juntos, em sua residência, às vezes no escritório, às vezes na sala principal e muitas outras numa pequena varanda contígua à casa.

Acredito ser um bom momento para apresentar essas entrevistas ao público de Mato Grosso do Sul, visto que temos aqui parte importante de nossa história a ser registrada para conhecimento das próximas gerações. 

Espero que todos tenham a paciência para ler esse extenso material, principalmente numa mídia como essa. Gostaria que os leitores percebessem que, além do material histórico, essa é uma conversa entre amigos. Confesso que esses encontros tornaram-se com o tempo muito prazerosos. Poucos jornalistas desfrutaram dessa oportunidade. Eu tive essa sorte.



Tema da entrevista realizada em 18 de maio de 1999:  Infância e Origens Familiares 

Pergunta - Vamos começar pelo começo: dia, mês, ano, o local onde o Sr. nasceu, enfim, os dados biográficos básicos.

Dr. Wilson – Eu nasci na fazenda São Pedro, então município de Campo Grande, hoje Sidrolândia, na região da vacaria. Era uma fazenda pertencente ao meu avô, Domingos Barbosa Martins; em seguida, meu pai ali construiu a casa da família. Era uma fazenda de terras arenosas e pouco férteis. Meu pai construiu uma casa para nós morarmos, confortável àquela época, isso deve ter sido em 1915, 1916.

P – A fazenda era grande?

W- Era uma fazenda de uns 6 mil hectares. Naquela época não era grande. ; ela depois foi vendida para o Jaime Barbosa, um parente nosso, que passou por sucessão para o seu genro, Iquício.

P- A sua família chegou aqui nesta região em que época?

W- A minha família chegou aqui nesta região da Vacaria em 1840, aproximadamente. A família Barbosa é originária de Minas Gerais , de Piumhi (uma das microrregiões de Minas Gerais, localizada no Oeste mineiro), próxima de Belo Horizonte. Dali, uma parte se destacou e foi residir em Ituverava. E anos depois, ela saiu dali e veio rumo ao Mato Grosso, sob orientação de {inaudível} Lopes, que era genro de Antônio Barbosa, um dos ramos da família. Eram três irmãos, os Barbosa: Inácio, Antônio e uma irmã chamada Francisca. Eles vieram para a Vacaria. Se estabeleceram na Boa Vista, onde Antônio Barbosa construiu uma morada e legalizou as terras. E Inácio Barbosa foi se instalar na fazenda Passatempo, também na Vacaria. Minha descendência é de Inácio. Esse é o meu ....( eu sou filho de Henrique, neto de Domingos, bisneto de Marcelino e tetraneto de Inácio). Ele se chamava Inácio Gonçalves Barbosa Marques. Ele ficou nessa fazenda {Passatempo} até morrer. E teve uma descendência numerosa. Ele inclusive deixou um livro, em capa de couro, que eu tenho até hoje. Está em meu poder esse livro. 

P- Este livro trata do quê? 

W- É um livro que mostra a pouca instrução da nossa família, as receitas de doce, essas coisas...

P- É um livro de registros...

W- Sim, é um livro de registros, e, basicamente dos registros mais importantes, nome dos filhos, data de nascimento, os filhos que casavam ali.Na fazenda Passatempo, cuja área era muito grande da qual pertencia a fazenda Alegrete, que coube a meu avô materno, filho de Inácio. Esse Antônio Barbosa era pai de minha mãe. 

P- Ou seja, a família tinha raízes muito antigas, origens muito antigas....

W- Essa é uma das partes; a outra parte da família era os Martins, que não são de Minas, são de São Paulo. Esse ramo da família é por parte de mãe, e meu bisavô , Henrique José Pires Martins; sei que ele trabalhou muito tempo com frei Timóteo {Fundador de Jaataizinho uma das cidades mais antigas do país, localizada no norte do Paraná}, e foi para Tibagi , no Paraná. Frequentemente subia o Rio Tibagi até o Paranapanema e descia o Paranapanema até o Rio Paraná, descia o Paraná e subia o Rio pardo... Viagens que os Martins fizeram... Levavam-se meses...e acabaram chegando à região da Vacaria. 

P- Voltando, então, o sr. nasceu na fazendo São Pedro e ficou até quando?

W- Eu nasci em São Pedro em 21 de junho de 1917. Ali fiquei até o ano de 1926. Com 9 anos nos deslocamos dessa fazenda para Rio Brilhante, chamava-se Entre Rios, distrito de Campo Grande. Ali havia um pequeno adensamento urbano, umas poucas ruas, duas escolas... Meu pai  e minha mão haviam decidido mudar-se para lá e minha mãe estava esperando o Plínio {Barbosa Martins}, que nasceu em agosto, assistido por médicos. 

P- O sr. não nasceu assistido por médicos?

W- Não, eu nasci na fazenda assistido pela minha bisavó, que era parteira. Chegou a cavalo para assistir minha mãe e eu nasci numa noite de muito frio, numa madrugada muito fria, minha mãe dizia que fazia muito frio. Eu sou o terceiro filho...éramos cinco: Gaia, Eunice (casada com Carlos Severo Martins Costa, falecido há um mês), Ênio Barbosa Martins , eu (casado com Nelly), Henrique (casado com Mariângela), todos nascidos com diferença de um ano para outro. Só o Plínio que nasceu em Rio Brilhante. Quando nasceu Henrique minha mãe foi assistida em São Paulo. Os outros três nascemos na fazenda; minha irmã no Alegrete, porque São Pedro não estava pronta e nós dois, eu e o Ênio, na São Pedro. 

P- O sr. começou os estudos em Rio Brilhante ?

W- As primeira letras foram ensinadas pelo meu pai na fazenda. Com as deficiências do ensino que um pai ministra aos filhos. As deficiências e a impaciência. (risos) 

P- Qual a imagem que o sr. guarda de seu pai?

W- Meu pai era um homem jovem, forte, decidido, dedicado, relativamente preparado, gostava de ler, tinha curso ginasial e tinha um gosto apurado pela leitura. Era um homem do campo com relativa ilustração. Era um homem que foi atraído pelas raízes da família para trabalhar nas fazendas.

P- O negócio das fazendas era gado? 

W- Sim, era gado, naquele tempo não havia lavoura. 

P- Nem erva mate? 

W- Não... meu pai, depois de Rio Brilhante, quando saímos de São Pedro, foi explorar fazenda de erva mate, próximo à Nova Andradina de nome do Ribeirão  porque que corre lá perto de Nova Andradina. Ali ele trabalhou muito nas duas áreas, que era de extração de mate, que era muito valorizada na época, que era exportada para a Argentina. O Brasil exportava todo o seu mate para a Argentina. E os preços eram muito bons. E também fazia exploração de pecuária. Nos campos mistos da região ele iniciou a plantação de capim colonião. Até então os pastos eram nativos. Ele começou a fazer a plantação de colonião, que se tornou uma riqueza naquela região. 

P- Nesse período, então, o sr. começou seus estudos ?

W- Em Rio Brilhante havia duas escolas. Uma era a Lúcia Machado e outra a escola de São Caetano. Nós frequentamos as duas escolas. A Lúcia Machado era melhor. Ambas eram escolas particulares. Não havia naquela época escola pública. Rio Brilhante era um distrito sem organização, não havia hospital, posto de saúde, cada um fazia por si. Praticamente não havia segurança; era tudo muito precário mesmo. Rio Brilhante era um distrito muito forte. Ali meu pai se embrenhou pelo chamado sertão, a região era deserta, havia uns poucos índios, chamados catequés, mas já eram aculturados, não havia estradas, não havia comunicação, tudo era muito difícil, tudo isolado, fazendas distantes umas das outras. Ali foi que meu pai exerceu sua atividade com maior entusiasmo, se sentiu melhor, ganhou dinheiro com a venda de mate, teve um bom rebanho... Nessa época, eu era mais velho, podia acompanhá-lo nas viagens e passei a conhecê-lo melhor ...

P- E a mãe do senhor, como ela era?

W- Minha mãe, Adelaide Barbosa Martins, era uma mulher de feições delicadas, mulher alta, extremamente boa, mulher que viveu sempre para a família, para o marido e para os filhos; ela era minha grande amiga. E viveu bem mais do que meu pai. Meu pai morreu com 62 anos, tendo vivido os últimos 6 anos dentro de casa, doente; minha mãe viveu até os 97 anos. Lúcida e conversando com os filhos, sempre muito próxima da família. Ela era admirada por todos. Ela arrebanhava em torno de si toda a família. Ela era Souza, tinha também meu avô Antônio, que se casou com a família Souza, a mulher dele se chamava....( não consegue lembrar-se).A origem da família era mineira, eram os Souza de Minas, que vieram residir aqui na Água Fria, município de Maracaju. 

P- Dr. Wilson, que tipo de menino o sr. era?

W- Eu era um menino muito ativo, buliçoso, briguento...lá em São Pedro eu me dedicava ao trabalho do campo... levantava-me cedo e ia para o curral, tomar leite no mangueiro , depois ia para o campo... tinha meu petiço (cavalo pequeno), eu gostava muita daquela vida lá no São Pedro...Lembro-me de um episódio de minha infância em São Pedro que me marcou muito. Em certa ocasião, faltou gordura para cozinhar em casa e minha mãe pediu que eu fosse na companhia do cozinheiro Benedito até o vizinho mais próximo, uns dez quilômetros... Fomos , eu no meu petiço, e ele no cavalo dele, fomos e trouxemos o toucinho e o córrego estava cheio. No retorno eu estava vindo próximo do cachorro e a hora que o cachorro acabou de atravessar o córrego eu ouvi os gritos dele. Em seguida, atropelei o petiço, ele passou , e na curva, em seguida, eu vi o cachorro enrolado por uma sucuri enorme. Corri até a fazenda (eu tinha cerca de 7 anos de idade) e vieram os empregados atender e não acharam mais a sucuri. Esse foi o episódio mais violento da minha infância. A emoção que me causou esse episódio foi muito forte, fiquei com muito medo...No mais, a vida em São Pedro era muito pacata. Tinha um belo pomar, um belo jardim ...Não pensava em sair de lá...E quando saímos eu pensei que tivéssemos saindo provisoriamente, que logo voltaríamos. Mas em Rio Brilhante, entramos no colégio, meu pai tomou outro rumo...A fazenda retornou ao meu avô, que ficou com ela até a morte de minha avó , quando ela foi inventariada com outros bens dele. E ai ela foi vendida para o Jaime Barbosa. 

P- A casa em que o sr. morou em Rio Brilhante ainda existe?

W- A casa em que eu morei em Rio Brilhante era de meu avô. Uma casa muito boa, muito ampla, onde nasceu o Plínio ; ainda existe a casa. É um sobradão...é uma das melhores casas de Rio Brilhante.

P- Eu acho que conheço essa casa, ela fica na saída da cidade...

W- Sim, é essa mesma...

P- Devia ser a melhor residência daquela região...

W- Sim, com certeza. Ela ficou desocupada durante algum tempo, foi vendida para o Sr. Italívio Coelho e foi transformada em armazém de máquinas por causa do terreno grande que tinha, depósito de grãos e, recentemente, foi toda reformada, muito bem reformada, coube ela ao Jairo, genro do Sr. Italívio, e uma das filhas do Jairo hoje é proprietária dessa casa. 

P- Se bem me lembro dessa casa, é possível depreender que já naquela época sua família simbolizava o poder econômico daquela região ?

W- Sim , a família tinha um status privilegiado.

P- Havia algum membro que nessa época já se interessava por política?

W- Uma figura que teve grande atuação política, que se interessou pelo estado, foi o Vespasiano (B. Martins). Nessa época, de 1926 a 29, o Vespasiano já tinha atuação política em Campo grande. Ele era realmente um líder da família. A família seguia as lutas dele e a direção que ele geralmente tomava nas suas decisões. 

P- O sr. saiu de Rio Brilhante e veio para Campo Grande em que época?

W- Eu sai de Rio Brilhante e vim para cá com meus dois irmãos, em 1929, Enio e Henrique, e entramos no ginásio municipal, a Escola particular João Tessitori Júnior. Haviam professores paulistas que tinham vindo para Aquidauana com o Dr. Arlindo de Lima e Dr. Dolor Ferreira de Andrade para formar a Pestalozzi em Aquidauana. E, posteriormente, vieram para Campo grande e ficaram aí no ginásio. Eu tinha doze anos nessa época, quando vim para Campo Grande. Entrei no terceiro ano primário. Fiquei interno com os meus irmãos. Vivia aborrecido e triste no colégio. Eu não conhecia aquela vida segregada. Longe da família. Meu pai e minha mãe moravam na fazenda Baile.

P- Campo Grande ainda era um pequeno lugarejo ....

W- Sim, era uma cidade pequena, sem pavimentação, resumia-se ao que hoje é a área central, no começo do bairro Amambaí. O colégio funcionava na 14 de julho com a avenida Mato Grosso. Entramos, eu e o meu irmão mais velho, no terceiro ano primário; fizemos algum progresso em Rio brilhante, apesar do ensino precário nas escolas. E no ano seguinte o colégio foi vendido para os padres salesianos, em 1930. Lembro bem ainda do Diretor, João Tessitore Júnior, no discurso de transferência do colégio, procurando conter as lágrimas e não podendo, levando as mãos aos olhos, emocionado pelo fato de vender o seu estabelecimento de ensino e se desligar do colégio. Ali ficamos internos em um colégio de extrema precariedade em todos os sentidos. Em Campo Grande havia muita poeira, não tinha pavimentação, o colégio não tinha instalações adequada  não havia esgoto sanitário; os poços de esgoto estavam sempre borbulhantes, cheios; a água acabava e não se tinha como tomar banho; muitas vezes saiam os alunos do colégio para a chácara do Gomes para tomar banho no córrego. Íamos para lá lavar roupa e tomar banho. Não havia disciplina, havia muita briga, muita falta de higiene; me lembro dos dormitórios  - havia um dormitório dos menores e outro dos maiores. Não havia instalações sanitárias adequadas, próximas, então colocavam baldes ao longo dos quartos , entre as camas , e os alunos, cheios de sono, se encostavam naqueles baldes e urinavam por ali e enchiam os baldes e pela manhã se via urina escorrer pelo chão.

P- E não havia contestação por parte dos alunos?

W- Era o que havia. E pouco a pouco os Salesianos foram melhorando aquilo. Foram dando melhores condições, construíram novos pavilhões.

P- Era um colégio exclusivamente masculino?

W- Sim , só havia meninos entre os internos. No tempo do Tessitori havia cursos mistos. E também durante o colégio Salesiano me recordo que tive três colegas no curso de Ginásio. Poucas mulheres. Os salesianos melhoraram aquilo, disciplinando mais os alunos, muitos da zona rural, muitos já crescidos, alguns portavam revólver...

P- Bem parecida com algumas escolas dos tempos atuais...( risos)

W- Era um ambiente pouco saudável (risos) . 

P– Dr.Wilson, deixe-me perguntar algo delicado: havia homossexualismo entre os meninos internos?

W- Não me recordo de um fato em que se tivesse verificado isso. Havia abordagens dos maiores para com os menores, tentativas, carícias... Mas nunca vi nada concreto acontecendo, nunca soube ...

P- Pergunto isso, porque, recentemente, estava lendo o livro de memórias do Oswald de Andrade e ele relata muitas ocorrências nesse sentido nos colégios internos paulistanos.

W- Não me recordo e creio que não havia realmente casos de homossexualismo no colégio nesse período. Prossegui os estudos ali até o quinto ano...

P- Quais eram as informações que os alunos recebiam dos acontecimentos da época? Havia jornais? Porque, veja, nessa época, nós tivemos a revolução de 30...

W- Nós não tínhamos informação nenhuma. Não tínhamos nenhuma noção de nada. O que sabíamos era o que se passava internamente do colégio e alguma coisa que conseguíamos colher nas saídas de domingo, quando tínhamos o direito de passear... eram conhecimentos pequenos, precários...

P- O sr. passou ao largo da revolução de 30, então...

W- Eu me recordo da revolução de 30 quando meus parentes estavam tomando posição, uns pela Aliança Liberal, outros preferiam apoiar o governo, havia aquelas discussões, mas não sei nem como votou meu pai nessa ocasião. Eu me recordo que ele estava preocupado porque um de seus irmãos, o Quiqui, tinha dado um voto num determinado sentido e ele tinha votado em outro sentido. Acompanhei muito por cima a revolução de 30. Todo o ideário e as conseqüências daquele período eu não soube avaliar. Só depois, bem mais tarde, é que fui entender aquele processo...

P- O tenentismo, a Coluna Prestes que passou por aqui, o sr. então não acompanhou de nenhuma forma esses acontecimentos ?

W- A passagem da Coluna Prestes eu assisti. Eu estava na fazenda São Pedro. 

P- O sr. conheceu Luís Carlos Prestes?

W- Não, passou pela minha fazenda a Coluna João Alberto e Siqueira Campos. Os dois passaram pela minha fazenda, meu pai não estava, minha mãe estava só e conosco estava um primo que estava com maleita, sendo tratado pela minha mãe. O nome dele era Godofredo de Souza Barbosa. 

P- Como o sr. se lembra desse acontecimento?

W- Eu fiquei extremamente impressionado com a quantidade de gente e cavalos, que despontaram na colina pelos lados da fazenda do Martins Pires. Eu nunca havia visto nada igual. Foi o maior espetáculo de minha infância. Eles foram chegando à fazenda, desmontando os cavalos, tomando conta de tudo e um dos soldados tomou para ele a sela do meu pai, esse soldado pegou e a levou lá num canto que ele escolhera para ficar. E nós levamos lá para dentro o João Alberto e o Siqueira Campos. Levamos para cumprimentar a minha mãe. Minha mãe cumprimentou, disse que o marido não estava, estava ausente, pediu que dessem garantia à casa, e que ela estava pronta para recebê-los, os convidou para almoçar, tomar café, estava pronta para hospedá-los. E realmente os hospedou. Sem problema na casa. Acomodou-os no quarto de hóspedes e ali eles ficaram. E eu logo que pude me queixei para o Siqueira Campos do soldado que tinha pegado o arreio do meu pai e os demais utensílios e levei-o até o lugar onde estava o soldado. Ele mandou imediatamente que ele devolvesse toda a tralha, que em seguida foi levada para dentro da casa. 

P- Qual foi a impressão do Siqueira Campos*?

W- Ele era moço, forte, muito simpático. Tive boa impressão por que ele atendeu meu pedido de devolução do arreio...

P- O sr. tinha clareza do que era a Coluna Prestes naquela época?

W- Não, não tinha, só soube mais tarde o que significava aquilo. Ali na fazenda não podiam conter, e não se contiveram, o que é normal num movimento como esse; os soldados mataram gado, as reses necessárias para o provisionamento, procuraram a tropa, mas nossa tropa estava escondida, os fazendeiros escondiam. O que eles deixaram lá foi o respeito à minha mãe e à família e somente deixaram a morte de nossas vacas de leite, que nós conhecíamos pelos nomes. Inclusive a Laranjinha. 

P –Mas fazendo um exercício de memória e olhando com os olhos de hoje como o sr. definiria a sociedade dessa época?

W- Era uma sociedade basicamente ruralista. O campo era mais importante do que a cidade. Começavam a surgir as cidades. Eram lampejos de urbanização. Havia Nioaque...começava Campo Grande...Havia Miranda ...Campo Grande era uma pequena cidade. Mas as bases da aristocracia rural ainda existiam, se é que se pode falar em aristocracia. Mas estava começando a época de plantação de cidades. 

P- O Sr. disse que aos domingos os internos podiam sair do colégio. Quando isso acontecia, que cidade o sr. via? Como era isso?

W- Eu visitava minha avó, minha tia ... Minha bisavó, Marcelina, visitava na mesma casa minha tia Teresa e passeava pela cidade, vinha para a praça, assistia algum jogo de futebol que houvesse e à tarde retornava ao colégio. 

P – O Sr. nasceu em 1917 e, a partir daí, houve no mundo um fato importantíssimo que foi a instauração da Revolução Russa. Como isso repercutia em Campo Grande ?. Havia temor na sociedade. Os padres salesianos faziam tentativas de doutrinação anticomunista? Como acontecia isso?

W- Não, não havia isso. Não me recordo de nenhuma referência do que se passava na Rússia nesse período. Não havia uma imprensa que informasse. Vivíamos em isolamento do mundo. Não havia rádio nessa época, órgãos de comunicação de massa não existiam, nem havia massa aqui para ser informada (risos). A cidade tinha uma população pequena .

P- O que o sr. lia nessa época?

W- Praticamente não lia. Me lembro de ter lido uns dois livros – um livro de contos e a “Retirada da Laguna”, de Taunay...

P- E a questão da Guerra do Paraguai, como repercutia na época ?

W- Nós tínhamos afeição pela minha avó paterna, que era Paraguaia. Ela era mulher de Domingos. Ele foi casar-se com ela ...Os fazendeiros daqui iam buscar sal e querosene, mercadorias, se aprovisionar um pouco no Paraguai e outro pouco em Miranda, e procurar médicos, dentistas em Assunção...E ia ao Paraguai, na Vila Conceição, era como se chamava, e ali conheceu essa paraguainha. E casou-se com ela. Trouxe-a para a família. Ela era uma mulher boníssima.

P – Foi a partir dessa época que o Sr. passou  a ter contato mais aproximado com  Vespasiano (Barbosa Martins)?

W-O meu primeiro contato com o Vespasiano foi muito ruim, que resultou numa antipatia muito grande. Ele mandou me chamar no colégio e me repreendeu asperamente porque um dos padres havia reclamado de minha conduta  no colégio. Eu tinha aprontado uma traquinagem qualquer. Eu não soube receber a repreensão dele como uma admoestação de quem quisesse me corrigir. Nós não tínhamos nenhum relacionamento. Posteriormente é que se travou um relacionamento muito amistoso e muito cordial.

P- O Sr. chegou a responder a ele ?

W- Não, eu ouvi , baixei a cabeça, levantei e sai. 

 (continua...)


*Antônio de Siqueira Campos ( 1898 /1930) foi um militar e político brasileiro. Participou do movimento tenentista e da Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, em julho de 1922. Foi um dos militares que marcharam na Avenida Atlântica, na orla marítima de Copacabana, em direção a cerca de 3.000 soldados legalistas e que, após intenso tiroteio em um combate totalmente desigual (18 revoltosos contra 3000 soldados do governo), acabaram sendo derrotados .