Odeio esse rigor porque sobrecarrega o armazém onde guardo a maioria das minhas lembranças. Confesso que não há um processo de seleção, até as pequenas tranqueiras, tralhas de várias espécies se acumulam sem nenhuma ordem nas prateleiras mantidas por ali.
Dessa mixórdia exala uma classe indefinida de gases tóxicos, produzidos de acordo com a gravidade da memória, fluídos corrosivos, alguns letais e de alto risco ao ambiente cerebral. Minha cabeça é incapaz de produzir pensamentos românticos.
Pelo que você lê é possível concluir que a minha cabeça deve ser evitada. Pelo menos por pessoas normais. O que se passa dentro dela você pode deduzir lendo o que escrevo.
Por uma questão de segurança, o setor onde são produzidas minhas ideias fica prudentemente localizado no ponto mais alto, próximo ao redemoinho de cabelo, no cocuruto da cabeça. Só que do lado de dentro. É uma linha de montagem específica para imaginar e, é ali que são produzidos meus maus pensamentos e as piores intenções.
Já tentei mudar o local pra melhorar a qualidade da imaginação, mas fui vencido pelos fornecedores de matéria prima, eles acham que está dando certo e é o mercado que determina o nível da fabricação.
Do lado esquerdo da linha de montagem fica instalada minha consciência. Por razões estratégicas a consciência é o setor que conta com maior número de operários ativos, todos especializados em limpeza, lavagem e enxugamento.
Por ser o setor com maior nível de poluição, a consciência exige turnos contínuos e trabalho sem interrupção. Não por acaso essa equipe é a melhor remunerada e se reveza para tentar mantê-la limpa e impecável, missão quase impossível. Afinal, a sacanagem é um produto que se renova com velocidade difícil de ser controlada.
Meu setor de agendamento mental perdeu totalmente seus objetivos iniciais, jamais lembrou ou me alertou sobre porra nenhuma, passando a produzir somente dores na cabeça. Meus clientes consumidores de dores de cabeça se rebelaram.
Por outro lado, o terminal de memória, depois de um certo tempo, deixou de registrar eventos mínimos e isso acabou afetando minhas atitudes externas. Numa guerra, se você perde contato com o quartel general, você perde a guerra. Isso acabou acontecendo.
A sala da Diretoria não tem sofisticações, é simples e conta com uma eclética cadeira executiva onde eu nunca sento. Prefiro o sofá velho, ao lado, onde me deito o tempo todo. Meu eu gestor, manda, dali, missões fluídicas a todas as partes do meu corpo.
O problema é que não leio os relatórios desses comandos, e fico sem retorno dos resultados, Mesmo assim permaneço lá recebendo e fingindo que leio os textos que chegam, consciente que não conheço nada sobre mim.
Minha cabeça é inexplicável. E descobri que alguns setores atuam independentes. Um deles emite ordens que não passam por mim. É uma saleta onde ninguém me deixa entrar e parece ser uma área confidencial. Numa plaqueta, do lado de fora, se lê: Libido Gerencial. Já tentei saber do que se trata, sem sucesso. Parece controlar setores específicos em mim ao qual não tenho acesso ou qualquer controle.
Se você me pegar de bom humor, dia desses levo você pra conhecer minha cabeça por dentro. Depois você me explica melhor o que se passa por lá.
*Escritor, publicitário e jornalista.