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Alexsandro Nogueira: O tédio e as sobras do almoço

O marmanjo já passou dos 40, mas continua morando com os pais. Vive uma espécie de caixa fechada, abafada, tediosa e despojada de confortos. Todo dia, só levanta da cama com o barulho do ar condicionado que dá uns socos e faz a janela tremer toda.

Em seguida, abre a veneziana para expulsar o ar gelado e a murrinha dos gases matinais.  Logo após a ducha, borrifa um desinfetante com cheiro de banheiro de rodoviária para eliminar o odor urinoso do cômodo. 

Em um canto da parede vê seu rosto no espelho. O ângulo é confuso e disforme. A cara já não é lá essas coisas: flácida, inchada, deprimente. Aquela imagem cansada é a mesma de ontem, hoje e, seguramente, de amanhã. 

Tem muitos cabelos brancos, fios espetados, rebeldes, algumas rugas e a barba quase rala. Uma barriga protuberante aproxima o umbigo da região pubiana. Parece ter mais idade e às vezes menos. 

Mora em uma sobreloja no coração da cidade. Por ali, dispõe de uma variedade de comércios que o abastecem. O bastante para se fartar de comida, bugigangas e não precisar ir longe para saciar suas necessidades.

Ao meio dia, pega grana com os pais e caminha alguns minutinhos para almoçar e tomar umas cervejas. O que sobra, manda embrulhar para viagem. Gosta de jantar comida fria e beber o caldo da carne, até lamber os dedos.

De volta ao quarto, lamenta os excessos durante o almoço. Um complicador para quem sente moleza no corpo e sono após as refeições. De qualquer modo, não resiste a tentação de esticar o corpo na cama.

Acorda no meio da noite já sob o efeito da fome e com disposição para levantar. O jeito, sempre foi consumir as sobras do almoço, acrescentando as gororobas da mama. Caminha rumo à cozinha já na expectativa de levar o primeiro garfo à boca.

Passa o restante da noite como um animal acuado. Deitado, liga o toca cds e fica em uma espécie de transe ouvindo Legião Urbana. A frase de Renato Russo define seu estado de espírito: “Há tempos o encanto está ausente”.

Teve alguns empregos e de todos foi despedido. Não sabia fazer nada direito e passava o dia desmotivado e com pena de si mesmo. Não fosse pela grana dos pais aposentados, até fome passaria.

Mas sentia a necessidade de mudar. Via-se na obrigação de procurar uma ocupação. Precisa buscar alguma coisa pra fazer, mas ainda não se fixou no assunto. Tem algumas ideias vagas que não tomaram forma ainda. Precisa de mais tempo para pensar, quem sabe. 

Nesse intervalo, vai inaugurar nova idade e com uma promessa: em breve, todos o encontrarão limpinho, penteado, barbeado, mas sem abrir mão daquilo que mais gosta: cultivar o ócio.

A última vez que o vi foi na véspera de finados. Nunca esquecerei a expressão de seu olhar: transmitia que todas as dores da alma viveu sob forte intensidade. Deu de beber agora para escutar com exatidão as vozes que invadem seu quarto. Estava mais sozinho do que nunca e nem a comida o consolava. 

*jornalista