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Liberdade: o romance de Franzen



Terminei de ler nessa semana o romance de Jonathan Franzen, “Liberdade” (Companhia das Letras, 2010) e posso dizer que saí do livro um ser humano melhor do que entrei. O que me liga à narrativa desse escritor americano, autor de “Correções”, obra sensacional de 2001, é a sua limpidez na investigação profunda das ansiedades modernas. 

Essa é a questão: o texto despretensioso, bem encadeado, sonoramente agradável, revela-se um passo construtivo do que costumamos chamar boa literatura em comparação com empreitadas modestas incensadas pelo marketing editorial.

O escritor mostra que não é preciso empinar o nariz para fazer arte.

Concordo que Franzen repita os esquemas de Tolstoi na construção de suas histórias familiares, usando e abusando de cacoetes oitocentistas, criando personagens com um senso de realismo que contraria os cânones da vanguarda literária pós-Joyce, mas esse é seu campo, sua graça e sua inventividade. 

“Liberdade” mergulha na Era Bush e antecipa o período pós-crise com a sombra de Obama, de um lado, e o conservadorismo republicano, de outro, indo do politicamente correto, passando pela reabilitação dos conceitos trazidos depois do porre da contracultura dos anos 60, chegando até a direita reativa que emerge agora de um cenário convulsivo. 

Se tudo isso resultou em Trump, Franzem não exerce aqui nenhuma função oracular, mas antecipa uma “crise” existencial explosiva que nos joga nesse movimento pendular da história.

Franzem coloca no centro da cena a família Berglund e dali, desse microcosmo da classe média americana, expande até onde é possível os dramas universais em torno do que significa viver no centro cosmopolita do mundo. 

O romance trabalha a ideia de recorte, explorando o naturalismo e as evidências das contradições humanas, com seus paroxismos e suas reviravoltas surpreendentes, de uma forma tão espontânea e lírica, com uma clareza estética tão direta, que acho ser impossível percorrer as mais de 600 páginas do livro sem fazer paradas reflexivas que terminam nutrindo uma espécie de otimismo benevolente com a vida e suas mazelas. 

Há cenas doloridas e hilariantes. O romance familiar flui com a voz freudiana modulando o jogo entre atos e pensamentos, dramas pessoais e ideologia política, ranços, raivas, ódio e amor. Tudo ao mesmo tempo, num fluxo que revela a cacofonia do nosso mundo contemporâneo. 

Enfim, “Liberdade” é um texto maduro e a sua trama é coisa para adultos. Sua leitura explora os variados tons que modulam as escolhas humanas diante de uma realidade na qual somos  narcisistas o suficiente para negar que cada um carregue dentro de si universos diferentes, planetas estranhos, poeiras diversas. 

O mundo do outro parece ser sempre o “nosso” mundo; estamos fadados a ser solitários falando para nós mesmos aquilo que não conseguimos compreender do desejo alheio.

Como muitos críticos já notaram, Franzem faz hoje aquilo que os romancistas russos fizeram nos séculos XVIII e XIX, ou seja, criaram a chamada “alma eslava”, antenados na ebulição de histórias em intensa transformação. 

“Liberdade”, com sua simplicidade densa e seu eloqüente sotaque novaiorquino, coloca três personagens – Walter, Patty e Richard – no foco central de um momento em que a América começa a duvidar de si e de seus valores.

A amizade fecunda entre eles desde a época estudantil é percorrida por meio de um jogo de dúvidas, sonhos e traições. Walter – um nerd ambientalista apaixonado por pássaros -, Patty, uma jogadora de basquete frustrada e neuroticamente dividida entre a vida doméstica e o modelo de engajamento político da esquerda chic, e Richard , um sedutor predatório que, devido ao talento e fúria, torna-se um famoso astro do mundo da música pop americana, compõem as amarras romanescas que indicam, a grosso modo, o que chamamos de espírito do tempo. 

As dezenas de personagens secundários que orbitam em torno dos três amalgamam o universo mental de uma Nação que ultrapassa seus limites e expande as dúvidas cruéis que todos os humanos enfrentam na sua vã existência. No fundo, não existe essa “liberdade” formal e idealizada que aprendemos nas democracias modernas. 

Estamos aprisionados pelas nossas paixões, nossos medos e nossas incertezas, marionetes do acaso e do destino, implorando, todos os dias, por respostas que não existem, fazendo perguntas que não compreendemos.