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Temer é o homem da casa


Toda imagem transgressora esconde um conservadorismo essencial. Ontem à tarde estava tomando café numa padaria e, de repente, entra uma moça com cabelos vermelhos, imensos dragões tatuados nos braços e um ideograma chinês escrito cóccix, dois piercings no nariz e pelo menos cinco argolas em cada orelha. 

À primeira vista imaginei mais uma modernosa de boutique, recém-chegada de Londres, mostrando para a província ignara o último grito da moda européia. 

Pelo visual, parecia uma personagem transgressora, com ideias avançadas, exalando feminismo e revolta contra o globalismo do “capitalismo financeiro selvagem e irracional”. 

Enfim, a moça era a materialização do politicamente correto, uma espécie de antecipação apocalíptica do que vem pela frente em termos de onda comportamental. 

De repente, ela atende ao telefone do meu lado e começa a conversar com uma amiga. Sua conversa me lembrou os anos 30. 

Os mesmos valores retrógrados, o mesmo mimimi sobre seu longo noivado, a religiosidade expressa a cada final de frase (“amém, amiga; amém amiga...”), enfim, era uma moça que queria casar, ter filhos e cuidar da casa.

Ontem, no dia internacional da mulher, o presidente Temer revelou ao País qual o modelo que ele imagina mais adequado ao feminismo. Lembrei-me mais uma vez dos anos 30. 

A figura do presidente diz exatamente quem ele é: um homem do passado, com valores e cultura dos tempos senhoriais, muito apropriado para figuras retratadas por Gilberto Freire em “Casa Grande & Senzala”, cuja visão de mundo ficou congelada enquanto a banda passava. 

Sua mulher, Marcela, bela, recatada e do lar, enquadra-se nesse modelito programável de “boa dona de casa”, que Temer acha o mais adequado para as mulheres. 

A frase presidencial – que provocou tanta polêmica – apenas revela o tempo (nesse quesito) do famoso homem cordial, provedor e protetor. 

No fundo, talvez a maioria das mulheres sonhe em ter para si um cara assim, mas que por injunções das transformações históricas não é mais possível, não só pela extrema “caretice” que representa, mas porque , como se sabe, a irrefreável marcha do progresso não permite. 

Perscrutando a alma de jovens mulheres e de rapazes descolados, muitos acreditam que se as relações humanas pudessem ser menos conflituosas e houvesse um novo contrato social em que os papéis masculinos e femininos pudessem ser redefinidos é provável que muitos Temers e Marcelas aparecessem de surpresa abrindo-se ao mundo. 

Outro dia li que na Noruega essa onda de mulheres em casa e homens na rua (ou vice-versa) está se espraiando. Mas, reparem, isso pode até estar acontecendo num País tedioso, sem diferenças sociais, com uma população extremamente educada, que pode curtir “diferenças numa boa”. 

O comentário de Temer – seguido por outro, pior ainda, de Renan Calheiros, feito na tribuna do senado – revela os valores de um homem formado numa outra sociedade, num outro planeta que, certamente, não mais existe no plano da cultura e do senso comum. 

Fico pensando: e se o presidente fosse um sujeito menos formal, usasse jeans, rabo de cavalo, brincos de brilhante e tatuagem no braço, será que se falasse a mesma coisa sobre o papel das mulheres como “cuidadoras” de casa as pessoas se escandalizariam da mesma maneira? 

Fica a dúvida para a posteridade.