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Mário Sérgio Conti: Lume do tempo que apagou



Nesse polêmico texto publicado na Folha de S.Paulo da última terça-feira muitos leitores se sentiram ofendidos com as opiniões de Conti sobre Ferreira Gullar. Sou da linha do jornalista. Nenhum poeta, artista, celebridades, seja o que diabo for, deve ser transformado em santo pelo simples fato de que morreu. A crítica bem engendrada cabe em qualquer circunstância. Segue o féretro:  

"A pretexto de chorar a perda de uma pessoa querida, choramos por nós mesmos; lamentamos o fim da boa opinião que ela tinha de nós, choramos a diminuição de nosso bem, de nosso prazer, de nossa consideração. Assim, os mortos têm a honra das lágrimas que são vertidas pelos vivos: enganamos a nós mesmos.

A máxima acima, de La Rochefoucauld, dissolve a neblina piegas que nos envelopa quando morre uma pessoa que nos fez o bem, da qual dependemos num tempo já passado. Alguém que amamos um dia. É o caso de Gotlib, o autor de histórias em quadrinhos falecido no domingo (4).

Artista maior de uma arte menor, ele era inapelavelmente nacional. Malograram, por exemplo, todas as tentativas de divulgá-lo no Brasil. Não que fosse complexo: tinha traço grosso e graça rude. Ocorre que a sua força eram as paródias, cujas vítimas estavam alhures, na indústria cultural francesa.

Gotlib não ilumina um período porque não se pode pedir isso de quadrinhos. Mas a sua fantasia e escárnio serviam de ácido para dissolver em ridículo a arte automatizada, na pomposa variante gaulesa. Como ele diria, o seu desenho era de ralar de rir: trabalho negativo, humor.

Já a pieguice serve bem de mortalha para outro desaparecido no domingo. Tivesse morrido há 40 anos, Ferreira Gullar teria virado mito. Arderiam como nunca as luzes recorrentes de seus versos: faísca, raio, labareda, lampejo. Sua poesia era relâmpago que clareia e queima.

"Poema sujo", de 1975, foi um incêndio. Com audácia formal, ele sintetizou engajamento político (comunista); aventura existencial (modorra em Moscou e golpe no Chile); solidão afetiva (o exílio o afastou de amantes) e remorso familiar (abandonou filhos pequenos, que se drogaram e adoeceram).

Esse artista inquieto e rebelde cedeu lugar ao Gullar dos últimos anos: cronista rançoso, esteta hostil ao novo, intelectual raso e ranheta, político embalsamado em conformismo, a exalar mofo acadêmico. Há décadas ele não fazia um poema que prestasse, e pontificava em prosa chocha.

Em "Rabo de Foguete", as suas lembranças do exílio, de 1998, ele empilhou num único parágrafo "coração aos pulos", "bêbado de felicidade", "vertigem que tirava o fôlego" e "adormeci sorrindo". Na memorialística do século 20, só o Jorge Amado de "Navegação de Cabotagem" o supera em chavões.

A poesia febril de Gullar diz respeito a um tempo que ficou para trás. A sua voz tem dificuldade em alcançar os leitores de hoje.

Será assim para sempre? No que dependesse dele, talvez sim. Foi o que concluiu no desenlace de um dos seus grandes poemas, "Praia do Caju", que no entanto serve de testemunho e luz:

A distância é vasta
tão vasta que nenhuma voz alcança.
O que passou passou.
Jamais acenderás de novo
o lume
do tempo que apagou.

*
Houve mais mortes nos últimos dias, mas de desconhecidos: as dos jogadores da Chapecoense, que tanto pranto ensejaram. Foram lágrimas a respeito das quais La Rochefoucauld também escreveu: Lágrimas que correm e secam facilmente: chora-se para ter a reputação de ser meigo, chora-se para ser lastimado, chora-se para ser chorado; chora-se enfim para evitar a vergonha de não chorar."

*Jornalista, editor e escritor.