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João Pereira Coutinho: defender Fidel é degradação do intelecto


Artigo publicado originalmente pela Folha de S.Paulo na edição de hoje:

Existe um filme de Harold Ramis que revejo todos os anos. O título é "Feitiço do Tempo" ("Groundhog Day", no original) e, se o leitor não conhece, abençoado seja: eu daria uma pequena fortuna para assistir ao bicho pela primeira vez.

No filme, encontramos um primoroso Bill Murray como repórter de TV que faz previsões de meteorologia. Ele é cínico, superficial, vulgar. E no "dia da marmota" (um acontecimento folclórico em Punxsutawney, Pensilvânia), ele viaja até ao lugarejo para informar se a dita cuja –a marmota, relembro– profetiza o fim do inverno ou a sua penosa continuação.

O inverno, segundo a marmota, vai continuar. Mas esse é o menor dos males para o jornalista. Pior do que o inverno é estar condenado a acordar todos os dias no mesmo dia. Encontrar as mesmas pessoas. Escutar as mesmas conversas. Assistir aos mesmos fenômenos. E adormecer com a certeza de que a manhã seguinte será apenas a manhã anterior.

O personagem de Bill Murray está aprisionado no tempo e no lugar. E se o leitor erudito pensa no "eterno retorno" do velho Friedrich, pensa bem: essa condenação é um imperativo ético para que Phil (eis o nome do condenado) possa finalmente viver e atuar como um homem distinto.

Às vezes penso que a política contemporânea é uma repetição de uma repetição de uma repetição. O caso Fidel Castro ilustra o ponto com dolorosa evidência. O ditador morreu? Não, dizem os acólitos, que rejeitam a palavra "ditador": o seu exemplo continua.

E, nos dias que sucederam a morte, lá veio o cortejo de delírios e falsidades. Fidel, o resistente. Fidel, o anti-imperialista. Fidel, o herói. E a pureza do ideal, e mais isto, e mais aquilo.

Sem esquecer as "estatísticas": aqueles que desprezam o sucesso econômico de Pinochet no Chile (e muito bem: um ditador é um ditador) gostam de falar de saúde e educação em Cuba (que, aqui entre nós, é mais mito que realidade).

Mas o mais estranho não são os elogios a Fidel. São aqueles infelizes, como eu, que sentem uma vontade instintiva de tentar expor a sua monstruosidade. Os fuzilamentos. Os naufrágios. Os presos políticos. A miséria insuportável. O bordel a céu aberto em que a ilha se tornou. E, depois, a pergunta angustiada: como é possível tolerar tudo isso? Branquear? Fazer de conta?

Entram as explicações –e Nelson Rodrigues, que escreveu a respeito antes de nós, só via duas hipóteses: idiotia ou canalhice. Tinha razão. E, se tinha razão, a pergunta fatal: para que perder tempo com idiotas e canalhas?

Então surge o "moderado": opiniões são opiniões. É preciso "respeitar" quem pensa diferente. Errado, irmão, errado. A política vive da discórdia quando se discute política. Você quer mais Estado, eu menos. Você deseja mais igualdade social, eu defendo mais liberdade individual. Tudo bem.

Mas esse diálogo termina quando entram em cena os pelotões de fuzilamento. Não existem ditaduras boas ou más, de esquerda ou de direita. A desumanidade não tem "pedigree" ideológico. As balas que rasgam a carne não discriminam. Donde, para que repetir o óbvio sempre que um torcionário deixa o mundo dos vivos?

Aliás, que conversa é essa de "respeitar" o comunismo no seu tempo e lugar? "Respeitamos" o nazismo no seu tempo e lugar? Olhamos para Hitler como alguém que defendeu o seu povo das humilhações da Primeira Guerra –e que transformou a Alemanha, contra todos os embargos europeus, em potência econômica e militar?

Melhor ainda: se Hitler tivesse abandonado os seus ideais de supremacia racial e defendido uma concepção oportunista de igualdade, o Holocausto seria perdoado como se perdoa o Gulag? O ideal seria mais importante do que os cadáveres?

Na morte de Fidel, escrevi o mínimo sobre o assunto. Vejo agora que escrevi demais: em 2016, argumentar com um defensor de Fidel é uma degradação do nosso intelecto e da nossa dignidade. É como levar a sério um demente que acredita ser Napoleão. E nós, tão dementes quando ele, repetindo: "Não, você não é o Napoleão. Ele morreu em 1821, acredite, existem provas".

Eis uma resolução: deixar de viver o mesmo dia. Quando alguém celebrar criminosos do passado ou do presente, eu já estarei no dia seguinte.

Deixemos o "dia da marmota" para quem gosta de viver no inverno do pensamento. 

Escritor português, é doutor em ciência política.