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Alexsandro Nogueira: Romance sexagenário



Mal o dia ia raiando e papai apareceu de supetão na porta de casa. Vinha de longe, num passinho apressado. Entrou de mansinho, para não fazer barulho e acordar as crianças. Sentou-se num canto perto do fogão, pigarreou a nicotina e pediu um café amargo. Em seguida, veio com uma conversa sinistra de que sentia a boca dormente e precisava de ajuda para decifrar um pesadelo.

“Meu Filho, sonhei que morri e que meu corpo estava no meio da sala. Mas antes de partir pra sei lá aonde, quero que você saiba de uma novidade: sua mãe, aquela mulher que destruiu a minha vida, está namorando seu sogro”.

Fez-se um silêncio de condenação na cozinha. Nos entreolhamos em mudez total. Papai era dramático, gostava de aumentar as histórias, mas desta vez falava sério e como falava.

Pelo gesto na bituca do cigarro, dava pra perceber que notícia mexia com seus brios e ressuscitava uma antiga história: meus pais foram casados por 15 anos, mas mamãe resolveu partir. Papai casou-se novamente, mas nunca a perdoou pelo abandono. Nasceu e foi criado com aquele sentimento de honra e vingança. 

Enquanto corria o assunto,  minha esposa ouvia a prosa e começou a engasgar num acesso de tosse. Era uma pista de que sabia de algo. Em seguida, apareceu sem jeito na cozinha para se recompor, tomando uns goles d’água.

Perguntei se era verdade. Ela evitou me encarar e como quem pisando em ovos, disse que já desconfiava do caso porque viu o pai depilando os tufos de pelos das orelhas e cantarolando Agepê no banheiro. Contou que aquele refrão não saia da sua cabeça: “Deixa eu te amar, faz de conta que sou o primeiro (...)”. O pai só cantava essa música quando tinha mulher nova no pedaço.

Minha esposa não se abalou com a notícia, mas estava preocupada com as investidas românticas do pai. Desde que ele passou a frequentar bailes da terceira idade, estava com um comportamento assanhado. Nesses inferninhos, entre chamamés e bate-coxas, soube que o pai remoçava nos braços das coroas.

Foi nesse período que ele passou a fazer uso de umas garrafadas fabricadas por um conterrâneo cearense. Uma mistura esquisita com ovo de codorna, catuaba, amendoim e geléia real. Confiava que a gororoba tinha propriedades medicinais e levantava qualquer coisa molenga e dormente. O efeito apareceria logo em seguida, com um formigamento na região da braguilha.

Se minha mulher não intervir e conter o velho, esse remédio iria fazer mal e mamãe não iria usufruir do efeito das garrafadas. 

Mas a notícia desse namoro correu logo pelos quatro cantos da cidade e, gente treinada no fuxico, agora queria meter o bedelho na vida de mamãe. Se fosse dar ouvido a tanta conversinha fiada, ia ficar louco. Até meu irmão caçula, que mora longe, telefonou escandalizado e me pediu para intervir.

Enfim mamãe me procurou pra dar notícias com a desculpa de que precisava ver os netos. No fundo, senti ali uma vontade de desabafar e marcamos um tereré para o fim da tarde.

No horário combinado, ela apareceu toda elegante, metida num vestido apertado que valorizava as curvas. Tinha os cabelos avermelhados, escovados e o rosto modelado em cremes que escondem as rugas de uma sexagenária. Um verdadeiro charme.

Percebi que estava nervosa, inquieta como se estivesse vergonha de alguma coisa. Tratou logo de colocar tudo em pratos limpos e, antes de finalizar a prosa, afirmou que vivia uma troca intensa de sentimentos e estava apaixonada como uma garota adolescente. De meu lado, disse que estava tudo bem e que torcia pelo sucesso do casal. Houve lágrimas e um abraço materno.

Antes de finalizar essa história, convém fazer um reparo: mamãe era viúva do segundo marido. Até vê-lo exalar o último suspiro e baixar à terra foi uma grande companheira. A ausência do parceiro, a fez perceber que precisava tocar a vida pra frente, sem tempo a perder. Pensamento que ela seguiu à risca.

Já papai seguia botando fogo pelas ventas e jurava que o casal sexagenário iria para as profundezas do inferno. Nos últimos vinte dias, foi visto na Vila Célia jogando baralho com os irmãos: um grandalhão que adorava romances com mulheres cuiabanas e uma cantora gordinha que promove carteado e anima bailes da terceira idade. 

A vida segue seu rumo.

*Jornalista e escritor/Campo Grande