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Luis Francisco Carvalho Filho: Do caixa 2 para o caixa 1


Artigo originalmente publicado na Folha de S.Paulo (24/09).

Caixa 2 é a designação para recursos financeiros paralelos à contabilidade oficial. Sempre foi instrumento de sonegação fiscal e corrupção. Mas o cerco se fecha: mecanismos de controle estão sendo implantados em diversos países, o que tornará sua prática uma modalidade arcaica de delinquência.

Pagamentos em "cash" (mais baratos pela não incidência de tributos) eram vistos com naturalidade, formando uma corrente que alcançava o faturamento das grandes empresas, a remuneração de profissionais liberais, como médicos, advogados e arquitetos, a compra de imóveis. A aceitação moral era ampla. A dinheirama circulava com facilidade, inclusive pelo sistema financeiro, sem chamar a atenção. A festa acabou.

Tratados internacionais, políticas de "compliance" em corporações empresariais, exigências de comunicação de movimentação atípica para órgãos reguladores como o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), sistemas de informática interligados e penas rigorosas para a lavagem de dinheiro reduzem drasticamente a viabilidade da circulação de ativos não contabilizados.

O último bastião do sistema são os paraísos fiscais que alimentaram, a partir de contas numeradas e da intermediação de doleiros, a transferência global e sigilosa de fortunas. Mas a repressão ao terrorismo, à corrupção e ao crime organizado exige o compartilhamento desimpedido de informações bancárias. Por isso, no Brasil, o incentivo para a repatriação de recursos depositados no exterior e não declarados ao Banco Central é visto como oportunidade derradeira para a limpeza do passado. O dinheiro frio perde interesse.

Diferentemente do que diz o ministro Geddel Vieira Lima, contribuição para campanhas políticas pelo caixa 2 é crime sim. É crime tributário, é crime eleitoral e pode sinalizar ocorrência de condutas mais graves, como o enriquecimento ilícito.

As investigações da Lava Jato mostram que o caixa 2 se disseminou pelo mundo partidário, sob o olhar complacente da Justiça Eleitoral, mas revelam também que a criminalidade econômica tem capacidade de se reacomodar: o modelo antigo do caixa 2 vai sendo substituído pela gestão ardilosa do caixa 1, que retrata a contabilidade formal dos valores.

O sistema vigente de contribuição eleitoral veda a doação de pessoas jurídicas. Mas uma empresa pode contratar os serviços de consultores que, de fato, apresentam em contrapartida "relatórios" e "estudos". A remuneração, acima da média de mercado, logo se transforma em distribuição de lucro e os sócios da firma de consultoria, por decisão ideológica, é claro, doam oficialmente, como pessoas físicas, parte do valor recebido para certo candidato. Tudo previamente ajustado. A operação tem aparência regular, os impostos são rigorosamente recolhidos, a origem da doação está disfarçada.

É um exemplo singelo do que a criatividade pode construir em matéria de engenharia financeira.

Empresas amigas farão o papel intermediário de ocultação do real motivo dos pagamentos.

O desafio das autoridades é identificar, dentro da normalidade dos negócios, a anatomia das operações simuladas. Cada vez menos os atos de corrupção serão consumados de maneira tosca, com a entrega de pacotes de dinheiro. Eles queimam a mão dos envolvidos.

*Advogado Criminal