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João Maurício Adeodato: O impeachment no Estado democrático


Publicado originalmente na edição de hoje da Folha de S.Paulo:

Numa definição simples e realista, o Estado democrático de Direito se qualifica a partir da independência do jurídico em relação ao político. O jurídico é o que se chama, tecnicamente, de procedimento.

O procedimento democrático se caracteriza por tornar secundário o "resultado", o que efetivamente se decide, privilegiando quem decide (o que os juristas denominam "autoridade competente") e como se decide (o "rito de elaboração").

Consequentemente, argumentos sobre o resultado -não importa o que adversários e defensores achem de sua justiça moral, política, religiosa etc.- são ignorados pelo direito. Dentre esses argumentos frágeis, quero ressaltar três, muito utilizados nos recentes eventos.

1) "O impeachment foi um golpe de Estado." Esse argumento se tornou mais obsoleto ainda na medida em que a própria ex-presidente, seus assessores e os políticos que a apoiavam participaram do procedimento.

Os defensores da tese alegam que "não houve" o alegado "crime de responsabilidade fiscal" e o Tribunal de Contas da União "mudou seu entendimento" sobre o caso, dentre vários outros similares.

Ora, o sistema jurídico diz, simplesmente, que quem determina a ocorrência dos fundamentos são as autoridades designadas: a Câmara dos Deputados, o Senado e o Supremo Tribunal Federal. Como essas autoridades divergem, o sistema jurídico também prevê a sequência, o prazo, o quórum e demais partes dos ritos para que essas autoridades se pronunciem.

Eventuais falhas passadas ou modificações futuras do procedimento podem ser questionadas e decididas, também por meio de autoridades competentes e ritos de elaboração.

Eu, por exemplo, em que pesem os descalabros do antigo governo e meu desprezo pessoal pela imensa maioria das autoridades da República nos três Poderes, sempre me pronunciei contra o impeachment. Infelizmente, a Constituição não me colocou como parte do procedimento.

2) "Os políticos que julgaram a presidente são menos honestos do que ela. Réus, corruptos, dilapidam a nação." Sem dúvida, esses argumentos de conteúdo ético são procedentes e verdadeiros: talvez nenhum país no mundo contemporâneo, fora da periferia abaixo da linha da miséria, tenha um corpo político de tão baixa qualidade quanto o Brasil.

Há, contudo, uma falha nesse raciocínio: a qualidade moral ou técnica das autoridades competentes não fazem parte do procedimento. Ao contrário, essas autoridades competentes foram designadas por outros procedimentos constitucionais legítimos para determinar o impeachment. São os representantes do "povo".

Essa segunda linha de frágil argumentação defende a "vontade do povo" como fonte de legitimidade em um momento (elegeu Dilma Rousseff) e a ignora em outro (elegeu deputados e senadores que decidiram, por esmagadora maioria, pelo impeachment).

Mais uma vez: o "povo" é uma ficção jurídica cuja "vontade" se realiza (deixa de ser ficção para se tornar realidade) no procedimento.

3) "O impeachment contraria a vontade popular que elegeu a presidente." Essa é a linha mais fraca, se é possível compará-las, a que mais demonstra ignorância jurídica.

O impeachment, em sentido geral, foi criado, precisamente, para se sobrepor ao procedimento da vontade popular que elegeu o Executivo. Ou seja, em qualquer Constituição que o abrigue, ele existe somente para destituir eleitos. Isso é o direito no presidencialismo democrático.

A civilização ocidental criou a democracia e seu procedimento justamente por causa das divergências inconciliáveis de opinião na sociedade. Regimes não democráticos se caracterizam por não respeitar o procedimento, por colocar perspectivas de justiça deste ou daquele grupo social acima das autoridades e ritos constituídos.

Não há democracia acima do procedimento. Uma solução a longo prazo é melhorar a qualidade das pessoas concretas (educação), para assim melhorar a qualidade do "povo" e de seus políticos. E, por que não, modificar os procedimentos. Que o Brasil melhore com essa crise.

*Doutor em filosofia do direito pela USP, é professor da Faculdade de Direito de Vitória (ES). Foi professor visitante da Universität Heidelberg (Alemanha)