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Alexsandro Nogueira: Lembranças dos meus temores


Água Limpa tinha um forte cheiro de capim molhado e de frutas maduras. Os casebres já estavam desbotados. As árvores pediam para onde o vento soprasse. Nos quintais, um punhado de galinhas ciscavam à solta. Ao fundo, cercas de balaústres separavam pequenas roças do córrego sujo e caudaloso.

 Antes do almoço, um mergulho na bica d’água para aliviar o suor do rosto. Na cozinha de casa, o barulho da panela no fogão à lenha anunciava um feijão gorducho e pronto para ir à mesa.

Não havia muito tempo que morava naquele lugar. Meu avô preferiu levar toda a família para viver ali, depois que perdeu a fazendinha. Decaído da condição de proprietário, circulava no matagal à procura de animais de caça.

A rua estreita e arenosa não lhe dava gosto e à mesa praguejava contra o lugar. À tardinha, ele armava uma rede preguiçosa em um lugar bem alto para fugir das formigas. Desanimado, contava a quantidade de galinhas que zanzavam pela casa.

Às voltas com o fogão, mamãe procurava por mais lenha antes do fogo se apagar. Ela era o tipo de mulher que não deixava se aniquilar pelo peso das atribuições domésticas. Eu afiava o ouvido tentando escutar a conversa deles.

Arrastando uma das pernas magras pelo pátio, meu avô mijava no lugar mais próximo. Geralmente, o local escolhido era a raiz da goiabeira. Mamãe reclamava do mau cheiro. Ele ameaçava ir embora para o rincão vizinho, dizendo que ia a pé mesmo.

Depois do jantar, ele sentava lá fora e contava suas lembranças. Das mais tristes quando viu seu pai partir pelo meio da invernada, até a mais feliz com recordações da mocidade.

Gostava de ressaltar que não era formoso, mas deixou muitas mulheres aos berros em outros cafundós. Eram outros tempos em que o vigor físico lhe permitia a vadiagem e as aventuras sexuais.

A noite trazia à tona suas recordações mais profundas. Fantasmas adormecidos que lhe confundiam a cabeça. Vovô tinha um passado vivo em seu encalço e pronto pra lhe cobrar em vida.

 O medo dava contornos a um rosto cansado e apreensivo. Por várias vezes tentou me contar o acontecido, mas mamãe sempre interrompia a conversa e me mandava ir dormir.

Mais um pouco ele começou a me contar tudo. Eu ouvia calado. Mamãe encrespou, mas permaneci concentrado na história. Ela entrou na conversa. Ele apertando a brasa do cigarro de palha ordenou silêncio.

O que viria a seguir era algo que o perturbava há anos. Tinha a sensação de ver sangue correndo nas mãos. Qualquer barulho suspeito e ele afirmava que eram passos rondando a casa.
Dava pra perceber que ele não andava dormindo bem. Devia estar pensando no corpo do ex-patrão estirado no chão. Ou quem sabe na família da vítima que jurou vingança.

Com minha mãe excomungando, ele confessava não ter dado cabo de todo mundo porque sentiu pena da viúva. Uma corja de pinguços que maltratava todos agregados, dizia.

 Tinha horror a espingarda ou qualquer tipo de arma de fogo. Podia ter matado o patrão, mas o fez a golpes de facão e olhando nos olhos da vítima.  Era um homem de coragem.

 Fugiu em cima de um cavalo levando no trote duas ou três rezes a reboque, deixando a viúva aos berros o chamando de matador. Não era assassino: a briga seguida de morte foi o estopim de um acerto de contas, depois de meses sem receber um centavo.

 Como não queria ampliar o escândalo, deu as costas à viúva e saiu da fanzendola às pressas. No caminho recorreu a um riacho pra matar a sede e horas depois uma mangueira aliviou a fome.

Amanhecia quando chegou a um lugar insalubre. Com medo que alguém o espreitasse, apurou pra vender o gado. Antes de partir, tomou uns tragos pra ganhar coragem e sumir no mundo. Com uma mixaria no bolso apeou do pangaré velho e baldeou para dentro de um trem.

Dali em diante construiu a vida marcada por vitórias e derrotas. A primeira façanha foi conseguir comprar um pedaço de terra. Um alqueire em um charco que lhe custou noites trabalhando em uma madeireira clandestina.

Antes de chegar a Água Limpa, peregrinou por alguns lugares. O mais marcante foi Vistosa, um lugarejo onde viveu com a mulher por décadas. Ali construiu família, fez amigos e viu sua fazendinha afundar depois que a colheita sucumbiu aos rigores do inverno. Ficou a saudade e o lamento.

Sem pranto, meu avô encerrou a história. Eu o conduzi até a cama. Dormíamos no mesmo quarto. No outro, minha mãe e minha irmã caçula dividiam uma cama de casal. Sobrava sempre um colchão de palha estendido na sala quando recebíamos visitas.

 Naquela noite, a atmosfera de medo deu lugar à aproximação. Ele ficou sem jeito quando segurei suas mãos. Gostava de dizer que não era homem de afeições. Era rústico, mas vi seus olhos lacrimejarem. Ele jurou que um cisco entrara em seu olho. E sem jeito permaneceu com os olhos em mim até dormir.

*jornalista