Marisa Serrano: lembranças de Lúdio Coelho
O fluxo do tempo é o espaço da memória. Os acontecimentos do passado se avivam nos momentos especiais de nossas vidas. As lembranças ganham força à medida que colocamos no centro de nossa existência aquelas experiências fundamentais que mudaram o curso de nossas vidas. Esses são os mistérios que forjam nosso destino entremeando acasos que cruzam nossos caminhos.
Faço esta reflexão quando lembro meu primeiro encontro com Lúdio Coelho, esse personagem tão especial de nossa história e, ao mesmo tempo, tão fundamental para que eu pudesse ser o que hoje sou.
Digo isso porque meu convívio com o “seo” Lúdio possibilitou uma importante inflexão na minha carreira política e também na minha formação republicana, criando o antes e o depois , estabelecendo na linha da história as mudanças que se refletem até os dias atuais.
As conversas constantes que mantínhamos sobre política, economia e projetos de interesse do País sempre eram revestidas de lições que acrescentavam aspectos positivos ao rumo das coisas. Lúdio era um homem especial porque conhecia o mundo das elites e tinha notável experiência com os sentimentos do povo.
Ele era um homem com estreita vivência do campo que compreendeu com clareza diferenciada a vida das cidades. Tanto que imprimiu conceitos administrativos inovadores quando foi prefeito de Campo Grande. Lúdio sabia agregar valores e compreender como nenhum outro político de sua geração o tempo histórico em que vivia.
Na sua visão de administrador ele projetou o crescimento urbano da Capital para os próximos 50 anos e estabeleceu marcos de planejamento urbano que até hoje permanecem em vigor.
Por outro lado, no aspecto político, Lúdio vislumbrou com clareza o impacto que os ventos democratizantes trariam ao País a partir dos anos 80 e passou a ser protagonista ativo deste processo, sem renegar o passado nem fazer tabula rasa das conquistas econômicas do período militar.
Lúdio tornou-se um democrata pleno, um político destituído de vaidade e melindres, pois conhecia a natureza das mudanças num País com pouca tradição democrática como o Brasil. Ele sabia ser objetivo em seus propósitos, defendendo com sinceridade e firmeza seus pontos de vista, acima de dogmas ideológicos, trabalhando com a esquerda e a direita, estabelecendo assim um fator de equilíbrio entre as tendências em disputa. Por isso, ao longo de sua vida pública, tornou-se uma referência para a classe política sul-mato-grossense e um modelo a ser seguido.
Para ele, o dia a dia de uma cidade deve começar como numa casa de família: primeiro varre-se e faz-se a limpeza geral das ruas, calçadas, áreas verdes, prédios públicos; depois, verificam-se as contas, cuidando sempre para que a receita jeitão, “seo” Lúdio fez uma administração revolucionária, equacionando problemas que se arrastavam havia anos na gestão do município.
Prefiro não me ater a datas precisas ou específicas – detalhes que podem nos enganar nos lapsos fugidios das nossas lembranças – e me voltar aos fatos que estão sempre presentes quando construímos a base do que somos nos laços de amizade que formamos ao longo da vida.
Posso dizer com absoluta convicção que Lúdio Coelho foi um mestre no sentido estrito do termo, principalmente porque ele ensinava mais pelo exemplo do que por imposições, mais pelos gestos do que pelos discursos, mais pela generosidade do que pelo mandonismo. Tinha uma acurada sensibilidade acerca dos sentimentos que permeavam os espectros sociais, contrariando aquela visão equivocada que muitos têm do fazendeiro tradicional de nossa terra.
Lembro como se fosse hoje. O ano era 1997. O Brasil ainda estava nos primeiros momentos da redemocratização e a ebulição política demandava a criação de novos partidos, fruto da diversidade de tendências ideológicas da nova sociedade brasileira que então surgia.
Lúdio foi o primeiro a compreender a importância de se criar uma vertente social democrata no quadro partidário de Mato Grosso do Sul e, assim, fundava o PSDB no Estado. Nos debates que se travavam e nas articulações que se sucediam no Congresso Nacional, três deputados federais, então no PMDB, passaram a integrar o novo partido: eu, representando o Mato Grosso do Sul, juntamente com Alberto Goldman e Aluízio Nunes Ferreira, ambos de São Paulo.
No contexto da época, de grandes indefinições e especulações, Lúdio Coelho figurava como uma espécie de timoneiro a nos guiar rumo ao porto seguro. Suas avaliações, percepções e articulações garantiam o fortalecimento do partido, indicando que estávamos no caminho correto.
Lúdio presidiu o partido com sabedoria e, em 2000, quando se preparava para o segundo mandato de prefeito de Campo Grande, convidou-me para ser membro do Diretório Estadual do Partido. A partir de então, tive o privilégio de conviver com maior proximidade com suas orientações e seu pensamento político.
Nesse período tive um aprendizado fundamental sobre como exercer a função de liderança partidária, sempre no sentido de saber ouvir a militância, compreender as demandas sociais e intuir os rumos a seguir.
Com essa plataforma, fui preparada por ele para assumir a 2ª vice- presidência do PSDB, em 2000, contando com seu aval e respaldo, herdando a estrutura orgânica que havia sido criada no quadro político estadual. Em 2002 Lúdio me deu seu apoio e assim assumi a presidência do Partido, tendo sido reeleita em 2004, sempre com seu estimula e sua liderança.
Neste aspecto, posso dizer com muito orgulho que uma das minhas matrizes políticas está sedimentada no olhar político do “seo” Lúdio, principalmente sobre como devemos nos conduzir na vida pública: com ética, decência, responsabilidade e senso de justiça.
Com certeza, foram estes os pontos com os quais nós mais nos identificamos desde o momento em que nos conhecemos. A vida é assim: pessoas com formação e história diversas gostam de se unir àquelas que possuem os mesmos propósitos e os mesmos sentimentos do mundo.
É curioso: pessoas diferentes tendem sempre a ficarem próximas e se apoiarem quando professam os mesmos valores, muitas vezes relativizando questões circunstanciais, sobretudo no dia a dia da política.
Faço essa afirmação porque no meu convívio com Lúdio um fato foi-me extremamente marcante, tendo sido aquele que me abriu novas perspectivas na minha carreira política.
Isso aconteceu nas eleições de 1994 quando candidatei-me ao cargo de deputada federal pelo PMDB. Lúdio, naquela ocasião, pertencia ao PTB e era prefeito de Campo Grande. Sua administração era bem sucedida e, com isso, ele era um “cabo eleitoral” privilegiado. Todos queriam seu apoio.
Durante boa parte da campanha ele relutou a formalizar apoio explícito às candidaturas proporcionais. Havia muita especulação sobre quem eram seus nomes preferidos (dentro e fora do PTB), mas ele se resguardava, “assuntando” – como ele dizia – o quadro para tomar uma decisão.
A campanha seguiu em frente e Lúdio manteve sua atuação política da maneira mais institucional possível. Na reta final, para surpresa geral, ele lançou uma carta de apoio ao meu nome, com uma introdução marcante que dizia o seguinte: “A história recente do Brasil nos obriga a continuar na luta para que o Congresso seja reflexo daqueles que trabalham digna e honestamente, daqueles que não enriqueceram com o dinheiro público e dos que tem coragem de apresentar-se para a sociedade sem a ostentação e o abuso de poder econômico tão vistos nesta campanha”.
A repercussão deste apoio tornou-se fundamental e decisivo para a minha vitória. E o trecho citado acabou tornando-se uma espécie de marca de minhas campanhas: simples, direta, envolvente, sem grandes pirotecnias, enfim, o jeito e a cara de “seo” Lúdio, que costumava dizer sempre que “com dinheiro público não se brinca”.
Pra finalizar este depoimento, quero reiterar mais uma vez: figuras políticas como Lúdio Coelho infelizmente estão se tornando cada vez mais raras no País. Mas sua força simbólica, tenho certeza, permanecerá ainda viva em nossos corações.
Ex- Senadora e Conselheira do Tribunal de Contas de Mato Grosso do Sul