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Alexsandro Nogueira: No fundo da alma


Se me falam em mulher virtuosa lembro-me dela: sentada no chão limpando o assoalho velho e já encardido pelo tempo. 

Era compulsiva por limpeza e encontrava na maneira de cuidar do piso de casa um sentido para existir.

Não gostava de detergentes, alvejantes e outros produtos - desses que facilitam o serviço doméstico. 

O negócio mesmo era aplicar força bruta nas mãos, junto com pano e sabão; produzia um odor na pele que lhe chegava às narinas como um estímulo.

Certo dia, uma vizinha quis saber o porquê de tamanha dedicação. Ela se irritou com a pergunta e desconversou. 

Mas seus gestos inquietos e a fala de voz abafada - como se estivesse com medo - denunciavam algo escandaloso naquele chão.

Jamais contaria suas intimidades para aquela mulher com ar de mexeriqueira. Como explicar que aquele lugar era um santuário? O que aconteceu naquela casa permaneceria no chão, em segredo. 

No dia seguinte, uma amiga de infância regressou e refez a mesma pergunta. Ela sem jeito resolveu inventar uma história para encerrar definitivamente o assunto. Como não tinha o hábito de mentir recriou um "causo" antigo de família para dar um ponto final naquela situação embaraçosa. 

Ao despedir-se da amiga, foi tragada pelas lembranças. Ficou arrepiada e tremula. Fechou a porta, quando começou a sentir calafrios e o gosto daquela língua áspera de hálito acre que por tempos roçou seus lábios. 

O coração disparou, o corpo começou a arder, deitou-se no assoalho frio olhando fixamente para um ponto como se ele estivesse ali, de pele e osso, com aquela voz que a enfeitiçava. 

Falava baixinho, consigo mesma, imaginando ele lhe fazendo uma visita. Chegou a vê-lo em cada detalhe como em um reflexo no espelho. Paralisada, sentiu uma vontade súbita de gritar, mas ficou imóvel como se estivesse amarrada ali para sempre. 

Nesses momentos, sentia uma saudade opressiva. Talvez o choque das lembranças a enlouqueceria definitivamente. Notou que o pranto vinha e saiu correndo de casa, tremula, em direção ao apartamento da vizinha. 

Lá, se derramou em lágrimas no colo da fofoqueira. Contou lhe que nessas ocasiões sentia o coração bater e que, de vez em quando, acordava no meio da noite temendo a solidão. 

Suas noites eram povoadas por lembranças, lágrimas que lhe davam uma sensação morna de estar na presença dele quando o sono cedia lugar ao desejo de dividir a cama com aquele homem de cabelo vermelho, tranqüilo, mas que na hora do amor se comportava como um animal impaciente. 

Contou ainda que em certas madrugadas de chuva e vento frio, encostava o rosto na janela de vidro fosco até fugir o anoitecer. 

Desabafou e assumiu um novo desejo: não queria mais chorar. Queria sair, livrar-se daquela atmosfera pesada, do cheiro ativo do assoalho que se espalha pela casa na proporção que a sala e o corredor se apinham, e das pessoas que não cessam de perguntar o porquê de tamanho cuidado com o chão daquela casa.

A vizinha a aconselhou a lavar a casa com creolina para aliviar o cheiro antigo dos móveis, e o odor da gordura impregnada nas paredes da cozinha. Ela preferiu abrir as janelas e deixar entrar o aroma de todas as manhãs, misturado ao perfume das flores que o vento morno traz dos jardins da redondeza.

Naquela sala da frente, onde moravam as maiores lembranças, a saudade assumia proporções gigantescas. Foi preciso que a apatia de doente cedesse lugar  a uma  fúria por mudança de vida.

Enfim, rompeu o silencio e a inércia, sacudiu os ombros e resolveu partir. De baixo da cama retirou uma das malas empoeiradas e guardou algumas mudas de roupa. O suficiente para começar uma vida nova, longe dali. Aquela casa era um deserto de almas. Precisava correr o mundo para apagar a memória.

Os dias seguintes não seriam melhores: teve um colapso nervoso. A polícia a encontrou perambulando na margem da estrada, amargurada pelas lembranças do lar, bêbada, quase nua, com as roupas rasgadas e a pele queimada de sol. 

Ao ser avistada pela diligência, correu para o mato em direção ao poente como o último sinal de vida. A perseguição durou poucos minutos até ser levada para um sanatório. 

Foi talvez esse episódio que antecipou seu fim. Jogada em uma enfermaria psiquiátrica permaneceu dopada. Meses depois, um jornal da região noticiou que ela se jogara da sacada. Morreu com o corpo retorcido, irreconhecível e o rosto colado em uma poça de sangue. Em uma das mãos encontraram um pano úmido que exalava a mistura de água e sabão.

Jornalista.

(Imagem: Edward Hooper)