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Um conto: Névoa



Escute: não me olhe assim. Não estranhe. Eu sussurro porque é o jeito que uso minha voz quando falo a verdade. Não tema. Esse tom é como se fosse a palavra impressa em meu rosto. Quando falo desse jeito, neste aparente solilóquio tênue e rouco, é porque encontrei o melhor de mim na própria expressão do que verdadeiramente sou.  Leia e reflita sobre as coisas que há muito estou querendo lhe dizer. Não tenha pressa. Só ouça. Não é preciso responder nem ficar assombrada com os meus enigmas. Mesmo porque esta conversa – entrecortada pelas contradições de seus fragmentos - é ditada pela leveza dos ventos de minha imaginação tardia. 

Sei que sou um homem de frases duras; e que sempre fui avesso à sutileza dos gestos. Nunca consegui abrandar as agruras das frases secas. Confesso: eu tinha medo de ser livre e depois não saber o que fazer com a liberdade autoconcedida. Sempre ocultei qualquer sinal de generosidade e doçura quando abraçava um irmão de fé, um amigo de esteio, um filho indócil e magoado; temia colocar-me no palco com aquele ar distante (e até hostil) de quem está fugindo de si mesmo, em busca do mofo (nos subterrâneos), no longínquo refúgio de nossas cascas. 

Sei que sou muitos, tantos quantos consigo inventar, e a minha existência é feita de sombras. Sei que há muito tumulto nos meus movimentos, embora em nenhum deles expresse a pureza que tenho na alma. No fim acho que perdi tudo na sofreguidão dos sofrimentos que fui colecionando. Minha impostura completa-me da cabeça aos pés. A minha rudeza aparente é um véu que embala a minha pele como se fosse um velcro de outro corpo. 

Imagine a cena: estamos deitados em nosso quarto, olhando-nos na penumbra, acreditando que o mundo é só nosso e que estamos no centro de tudo. No exato momento em que estamos nos olhando percebemos que aquele instante pertence somente aos nossos sonhos e à nossa dor. 

Estamos agora despidos de todos os grilhões que nos faz humanos. Estamos ultrapassados pelo próprio sentido das coisas, que, noutra esfera do cosmo, pertencem verdadeiramente a todas as coisas. Nosso ser corpóreo é apenas um bálsamo de mirra. Celebramos a nossa existência ficando em quietude. Em profunda quietude. Manifestando nossa incerteza em silêncio. Aceitando a imprevisibilidade do que ia acontecer em silêncio. Ocultando nosso constrangimento em silêncio.

Por um momento, achei que isso era tudo o que podia dizer, embora não soubesse, e estava com muito medo; tudo que eu podia revelar já estava escrito em algum lugar, e que qualquer confissão ou revelação seria inútil porque seria mera repetição de tudo que conhecíamos desde os tempos imemoriais, no tempo dos cinzéis de nossas mortalhas. 

Não sei se você me compreende. Somos dois e um só ao mesmo tempo. Estamos confluídos pelos perfumes tépidos de mil cheiros de alfazemas, que incensam a atmosfera febril que nos embala. Estamos suspensos no ar, lavando-nos em voluteantes sinais de éter que serpenteiam chumaços de nuvens que pairam sobre nossas cabeças. Estamos em paz; não aquela paz branda, branca, neutra. A outra paz: aquela que nos integra na penumbra outonal do quarto escuro e nos intensifica na pele macia que afagamos lentamente com extrato de manacá. Estamos olhando para o nada. Respirando baixinho, transbordando-nos sobre aquela calma que faz doer nosso estômago de tanta felicidade. 

Depois, tomados pela mansidão, resolvo falar pela primeira vez em toda a minha vida sobre os assuntos que voam despedaçados nos meus pensamentos. Você está despetalada e pronta para me ouvir. Trememos. Percebo isso de olhos fechados. Sei do perigo que corremos. Você é uma flor aberta pronta para entregar o néctar generoso de teus seios. Você está maternalmente sóbria e inteira para me embalar. Você me olha como se dissesse: sou tua e sempre serei tua. Sou tua e sempre estarei contigo. Sou tua porque sou você e você sou eu. Sou tua porque celebro a vida no instante em que ela acontece com você. Sou tua. Essencialmente. E nada mais. 

Eu sei de tudo. Eu sinto a plenitude desse vínculo. O texto que conflui a nossa existência está impresso no chão em que pisamos. Há manchas, rachaduras, visgos e nódoas em toda a parte. Decifro estes desenhos que imagino existirem na sua pele alva e decifro os mistérios que sombreiam sobre o seu torso. Uso então essa voz rouca e falo pausadamente porque quero que cada palavra fique impregnada com o meu ser sobre você inteira.  

O que nos separa são os nossos segredos. Estes segredos são revelados naquilo que os nossos olhos ocultam. Simulamos adornos nos sinais que os nossos movimentos escondem. Falseamos sussurros na medida em que pronunciamos frases curtas nos murmúrios que nos retesam. Depois deixamos que o silêncio atordoe nossa volúpia e nossa alma. Depois permitimos que os sinais açambarquem nossos abraços. No fim, habitamos a sobriedade de nossos gestos, esperando que a ansiedade de nosso amor cesse no cansaço de nossos corpos. 

Os nossos olhos nos revelam. Sei que tememos todas as verdades. Jorrar palavras, gritar, urrar, rir às escâncaras, gozar a nossa liberdade enternecedora como se quiséssemos revelar ao mundo uma loucura incontida. Em você eu amo não só a mim como à humanidade inteira. Em você eu encerro o meu dia renascendo na expectativa de nascer novamente na manhã seguinte.

Depois, no entardecer, vem o breu. Ouça. O silêncio é o escuro que nos acolhe. A noite chega e continuamos imóveis em nossa cama. Dormimos e acordamos. Dormimos e acordamos. Esse pulsar entre o sonho e a loucura nos preenche com os barulhos esparsos que vem das ruas. Apenas olhamos para o teto branco. Nos comunicamos com os olhos, com as mãos, com as pernas, com nossos líquidos e nossos suspiros.

Depois, vem o sonho. E com ele redirecionamos nossas intenções. Decido continuar ocultar os segredos de nossos silêncios para sempre porque não há verdade que resista a mudança das horas. 

Com a força dos nossos pensamentos queremos parar o tempo. Nossos esforços integram-se com um único propósito: que nada aconteça que nada se altere que nada atrapalhe essa coisa que nos domina e nos preenche. A noite dura a eternidade. Depois, longe, muito longe, um cão gane, um galo canta e a insônia se irrompe no lusco-fusco espantando a madrugada. Dormimos e acordamos. Até que, enfim, mergulhamos na névoa que transformará o dia seguinte na despedida desesperada de um dia que apenas sobreviverá nas palavras mudas que ficarão retidas nas memórias fatigadas dos nossos desejos.