Pages

Não há crimes no paraíso









O primeiro sintoma de decadência de um governo aparece quando seus integrantes começam a negar a realidade. As convicções substituem a verdade. Os argumentos fantasiosos sempre encontram justificativas para aplainar os erros cometidos, apontando na direção de culpados imaginários. O inferno são os outros. Para elites governamentais, todos os atos e decisões sempre tem o condão das virtudes e das boas intenções.
Se aparecem denúncia trata-se de conspiração ou de interesses pessoais contrariados. Se a sociedade protesta, ela é manipulada. Se a economia esboroa, a culpa é dos imperialistas americanos e dos capitalistas perversos.
E, assim, o elenco de “fatos distorcidos” pode ser estendido a todas as esferas sociais. Se a Polícia Federal e o Ministério Público descobrem um esquema de corrupção, a resposta está na ponta língua: corruptos sempre existiram, não fomos nós que inventamos essa prática. Se poderosos são investigados e presos, centenas de advogados agem na defesa de seus interesses, afirmando que o judiciário está vivendo tempos sombrios, com saudades da ditadura.
Para dar respostas à opinião pública, qualquer coisa serve, menos a crua verdade. Abrir espaço para a autocrítica, reconhecendo erros e culpados, aí já é demais, é burrice e tiro no pé. Não há crimes no paraíso lulopetista nem em qualquer governo que se conheça.
Enfim, a mídia é golpista porque noticia o impeachment da Dilma. O Congresso Nacional é nefasto porque atua sob a batuta de Eduardo Cunha e Renan Calheiros. A classe média reclama porque não aceita ver a ascensão social dos pobres. As esquerdas pretendem ser vitimizadas porque a direita vem assumindo o protagonismo político. Quando malucos vão às rua promover um quebra-pau isso representa a “voz dos excluídos”. Quando alguém xinga e protesta contra um magano do PT em restaurante isso é “ódio e intolerância” dos conservadores.
Enfim, coisas normais de uma sociedade que se pluraliza em ordem crescente, com o fortalecimento de suas instituições democráticas, adquire, nestes contextos, dimensão exagerada aos olhos de quem só consegue enxergar a existência do mundo como um espaço bipolar. Se o sujeito é contra o PT é porque ele pertence ao PSDB na ordem direta das coisas. O contrário também vale, mesmo porque aquilo que não é branco só pode ser preto.
Se alguém defende o impeachment de Dilma é porque é de direita cerrando fileira com golpistas. Se alguém contesta as articulações para tirá-la da cadeira presidencial a explicação é fácil: o cara é petista enrustido.
Não há saídas fáceis nem opiniões convergentes. A natureza dos diálogos é sempre politizada na direção da burrice. O debate das idéias acaba sendo substituída por algaravias inócuas de quem acha que discutir complexidades é o mesmo que vencer (ou perder) disputas no grito.
Nesse quadro, de todas as facetas ideológicas em vigor nos dias que correm, a pior é aquela que vem carregada pelo fenômeno do “governismo”. Não importa que seu agente seja de direita, esquerda ou centro. O governista clássico compreende duas atitudes: 1-) nunca falar, ver ou ouvir. O “seu” governo está sempre certo. 2-) Qualquer crítica (mesmo bem-intencionada) é vista como sinal de “oposição”. Qualquer debate desinteressado que discute atos e decisões governamentais erradas e demagógicas insere-se na esfera pecaminosa do “oposicionismo”. Não existe crime no paraíso.
O resultado desse pensamento dual flerta com o fascismo ou com o stalinismo tardio. No fundo, é manifestação do atraso político porque estabelece a negação reativa como modelo de pensamento. Na superfície, é o cacoete histórico do autoritarismo que nunca abandonou a formação ideológica dos chamados setores pensantes de nossa sociedade.
O governismo ideológico não consegue compreender o óbvio: estimular divergências criativas contribui para que se encontre saídas mais consistentes para problemas que não permitem que o Estado brasileiro estabeleça políticas públicas de longo prazo, saindo da lógica da promoção de vôos de galinha para a busca de resultados eleitorais.
O caos vivenciado hoje tem sua origem nas decisões de uma presidente ultracentralizadora, apoiada por uma ampla burocracia hostil a qualquer inovação que esteja fora da cartilha do capitalismo estatizante.
Infelizmente, Mato Grosso do Sul, em escala menor e mais modesta, vive o mesmo fenômeno. A diferença talvez resida apenas no fato de que não há nenhuma cartilha a ser lida e, se houvesse, de pouco adiantaria porque os “governistas” locais ainda não descobriram o que fazer com o Governo que tem nas mãos.