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A vida privada é uma quimera romântica




Nesta altura do campeonato, é uma idiotice imaginar que possa haver vida privada no mundo. Estamos sendo bisbilhotados de todas as maneiras. Invadem nossos computadores, nossos telefones, nossa vida doméstica, nossos gostos, nossas vontades, enfim, não há escaninho de nossa existência que não esteja sujeito ao conhecimento de governos e empresas. 

Talvez só não seja possível (até agora) invadir nossas almas, perscrutando nossos pensamentos secretos, mesmo porque isso pertence ao instante, e o instante só é possível de ser revelado quando existir um aparelho que "leia" os momentos fugazes pelos quais seguimos adiante pela existência, às cegas e sem razão. Viver é alucinar e isso, por enquanto, é impossível de ser registrado por qualquer equipamento tecnológico.

O mais grave é que estamos aceitando a regra do jogo. Colocamos esse problema numa balança e nos perguntamos: não é melhor abrirmos mãos da proteção de nossa intimidade para desfrutarmos de mais segurança e bem-estar, com a ampla disponibilidade às  tecnologias que colocam o mundo à nossa frente num simples apertar de botões? A cada clic no mause temos acesso a informações múltiplas, o luxo e o lixo, o melhor e o pior, do mais brega ao mais sofisticado, do mais pudico ao mais promíscuo, sem contar que podemos ampliar nosso ambiente de relacionamento, conhecendo pessoas que jamais teríamos chance de conhecer não fossem as redes sociais e os milhares de aplicativos que nos colocam de corpo inteiro diante de possibilidades infinitas para saber de coisas e seres humanos que habitam culturas e costumes inimagináveis. Tudo isso dá um prazer imenso, não é?

O presidente Obama disse outro dia: o preço que pagamos para que algum maluco seja impedido de detonar ogivas nucleares em qualquer parte do planeta é o de aceitarmos que organismos "secretos" possam acompanhar de perto (e de dentro) como fazemos nossas higiene, com quem e o que falamos, conhecendo, assim, nossas taras e nossas preferências religiosas, ideológicas e sexuais de ponta-cabeça. 

Tempos atrás, por exemplo, por meio de informações disponibilizadas pelo Serasa no site "Consultor Jurídico", ficamos sabendo que FHC fez compras na Tiffany,  que Lula e Dilma tem créditos diferenciados na praça, que políticos e grandes figuras da Pátria são acompanhados pelo "Grande Irmão" em suas compras no mercado mundial numa demonstração clara de que tudo o que fazemos fica registrado numa grande máquina devoradora de informações, sem que tenhamos controle nem qualquer direito para saber quem as utiliza e para quais finalidades. 

Outro dia tive meu computador pessoal de trabalho invadido. Um sujeito esquisito (tenho as imagens) copiou todos meus arquivos profissionais para saber o que escrevo, para quem envio meus e-mails, o que acesso no dia a dia, enfim, o que faço na intimidade. Achei graça porque sei que ele descobrirá que tenho uma vida monótona, casta e estritamente focada em assuntos que não interessam à maioria das pessoas. 

O chato disso tudo é que sempre tive obsessão pela preservação da intimidade. Sou um sujeito adstrito e previsível. Não participo de redes sociais e evito expor minhas idiossincrasias para o mundo. Já resolvi meus dramas interiores em anos e anos deitado no divã.

A filosofia moderna tem refletido sobre estas questões – vida privada e Estado-total - de maneira contundente. Pensadores do momento dizem que vivemos num "Estado de Exceção". Quando todas as informações sobre as pessoas estiverem dominadas, estaremos vivendo na plenitude do totalitarismo, eles dizem. Será fácil para os futuros ditadores nos alcançarem e nos abaterem. Eles alertam: quando isso ficar evidente aí será tarde demais para se arrepender deste maravilhoso mundo novo.