Ex-presidente Bolsonaro e o deputado federal Rodolfo Nogueira (o Gordinho do Bolsonaro)
Há males que vêm para o bem. E há o bolsonarismo — que vem para o mal mesmo, escancarado, sorridente e armado. Talvez seja, sem exagero, a mais grave moléstia política a contaminar nossa frágil democracia desde que ela foi parida à fórceps no porão da história.
É preciso dizer sem meias palavras: o bolsonarismo é a forma mais bem-sucedida de regressão institucional desde 1964. Não por sua capacidade intelectual, que inexiste, mas pela sua força de contágio. Uma doutrina de ódio e ignorância, travestida de patriotismo, que encontra no “gado” uma plateia voluntária, sedenta por ração, cercas elétricas e orações contra comunistas imaginários que ainda estariam debaixo da cama operária. Memória seletiva, quando não amnésia completa.
Sim, porque esse mesmo país que hoje berra por “intervenção constitucional militar” já foi rasgado por baionetas, atropelado por tanques e silenciado por coturnos. E há números que não permitem revisionismo: entre os mortos e desaparecidos pela ditadura de 1964, são 434 vítimas oficialmente reconhecidas, fora os corpos que nunca boiaram — muitos deles lançados ao mar como lixo humano ou enterrados como indigentes nos cemitérios clandestinos da repressão. Isso sem contar os milhares de torturados, exilados, censurados, silenciados. Tudo em nome da “salvação nacional”.
Na prática, um regime de exceção que perseguiu não apenas guerrilheiros, mas estudantes, professores, artistas, jornalistas e… comerciantes de oposição. Em Dourados, por exemplo, não faltam histórias — daquelas que ainda cochicham pelos corredores do velho casarão da João Rosa Góes, ou fervilham na padaria do fuxico da rua Cuiabá. Comunistas “capturados” com base em fofoca de “socialite do agro” ou denúncia de adversário político.
O Sindicato Rural de Dourados, para citar uma instituição emblemática da terra de seu Marcelino, já abrigou mais que bois premiados: teve também baia pra prender estudante metido a militante, como Harrison de Figueiredo; advogado “comunista”, como João Beltran; médico progressista, como Áureo Garcia Ribeiro; e até lavrador que ousava falar em reforma agrária.
E tudo isso com a conivência dos coronéis da política local — muitos deles hoje reinventados como “empresários de bem”. Nessa nova roupagem, o autoritarismo de ontem ressuscita com nomes próprios: o Gordinho do Bolsonaro, o Sargento Suco, o pastor que abençoa as armas e a dentista que jurava que as urnas são programadas por satanistas de Havana. Tudo sob a égide de Deus, Pátria, Família… e Pix no gabinete.
O bolsonarismo bebe dessa mesma fonte: autoritarismo disfarçado de salvação, violência legitimada em nome da “família”, culto ao militarismo, desprezo pela diversidade e pela ciência, ódio ao pensamento crítico. É como se a ditadura tivesse voltado com Wi-Fi e fake news — com farda digital e tanques simbólicos nas redes sociais.
A idolatria à “direita” — essa que muitos hoje confundem com moral e bons costumes — é um dos grandes equívocos nacionais. A verdadeira direita liberal, democrática, que dialoga e negocia, foi enterrada junto com Ulysses Guimarães, Tancredo Neves e Franco Montoro. O que sobrou foi o espantalho tosco, armado, violento e teocrático, encarnado por Jair Bolsonaro e seus discípulos, como o seu gordinho, o deputado Rodolfo Nogueira ou o vereador sargento Prates. Caricaturas grotescas de conservadorismo, onde o que se conserva é apenas o preconceito, a ignorância e a vontade de censura.
O Brasil nunca foi um país afeito à democracia plena. Tivemos mais anos sob autoritarismo do que sob regimes abertos. E o bolsonarismo é apenas mais uma mutação de um velho DNA autoritário — forjado na caserna, nutrido pelas elites e com raízes profundas na velha e marvada UDN, cujos expoentes por aqui foram Dalmário de Almeida, Floriano Viegas Machado e Arnulpho Fioravanti, sempre prontos a conspirar contra qualquer sopro de soberania popular. Esse vírus nunca foi erradicado — apenas mudou de roupa, aprendeu a usar WhatsApp e se travestiu de “nova política”.
Mas a história cobra. E não há anistia para a estupidez histórica.
Valfrido Silva é jornalista Dourandense e escreve no site Contraponto MS